Não é tarefa das mais fáceis resenhar criticamente o filme “Sin City”, ora em cartaz no circuitão.
Baseado (e bota baseado nisso!) na graphic novel de Frank Miller, que também assina a direção junto com Roberto Rodriguez e “o diretor convidado” Quentin Tarantino, finalmente chegamos à mais completa e perfeita adaptação de quadrinhos para a tela.
Mas o filme é bom? É ruim?
*
Não há como reduzir o diagnóstico a esta simplificação dual. Eu, pelo menos, saí do cinema sem saber, com clareza, como responder a esta pergunta.
Antes de abordar o filme, propriamente dito, vale a pena comentar sobre alguns dados curriculares a respeito do criador da história. Com certeza, serão úteis na compreensão da estética do filme.
*
Frank Miller trabalhou como roteirista e desenhista nas duas maiores editoras de comics (quadrinhos) norte-americanas – a Marvel e a DC. Fora outros lançamentos em independentes. Com seu inegável talento, ele foi responsável pela reformulação de super-heróis das duas majors. Na Marvel, por exemplo, ele praticamente recriou o “Demolidor”, que era um herói meio sem graça, cuja revista estava prestes a ser cancelada. De roldão, ele deu outra consistência a vilões como o “Rei do Crime” e criou personagens secundários que fizeram enorme sucesso, como o Stick e a sensacional Elektra.
Na DC, para o Batman, ele criou a graphic novel “Cavaleiro das Trevas”, para muitos a melhor história em quadrinhos de todos os tempos (eu discordo, mas reconheço que é uma extraordinária revista). Posteriormente, em “Batman – Ano 1” (roteiro dele e desenhos de David Mazzuccheli), ele põe definitivamente o Morcegão nos trilhos. Miller ainda lançaria outras obras de fôlego e qualidade como “Ronin”, por exemplo. Há coisa de alguns anos, ele lançou a série “Sin City”, com o êxito habitual.
Mas ele não colecionou somente sucessos em sua carreira. Foi dele o roteiro de “Robocop 2”, aqui pra nós, uma bomba de mil megatons. Não sei se por dinheiro, ou por não resistir ao canto da sereia da DC Comics, ele lançou também o “Cavaleiro das Trevas 2”, uma bobagem do tamanho de Gothan City.
*
É inegável que ele criou um estilo pessoalíssimo nos quadrinhos, baseado em muita violência com toques de humor e incluindo flertes com as artes marciais (especialmente a japonesa). Alguém identificou entre os cineastas alguém com estas características? Ponto para quem disse: “Quentin Tarantino”. Estava claro que mais cedo ou mais tarde seus caminhos iriam se cruzar. Pois se cruzaram em “Sin City”. Roberto Rodriguez (diretor de “O Pistoleiro” e “Pequenos Espiões”), da “tchurma” do Tarantino, serviu de elo de ligação entre os dois.
*
O filme conta histórias de personagens que se entrelaçam no submundo da cidade de “Basin City”. Um tanto pela placa nos arredores, que está com o “B” e o “A” meio apagados (sobrando o “SIN CITY”, grande sacada), outro tanto maior pelos habitantes daquele lugar – polícia e políticos corruptos (marca pessoal de Miller), prostitutas, sujeitos durões, um pedófilo e até um canibal, aquela cidade faria Sodoma e Gomorra parecerem Disneyworld, de tanto pecado (“sin”, em inglês) que rola por lá .
Miller eleva à última potência o conceito de filme noir (aquele em que tudo de interessante só acontece a noite, aliás, em Sin City parece que a noite dura 24 horas). Neste quesito, o filme é brilhante. As cenas e os enquadramentos parecem ter usado a própria revista como story board: algumas são literalmente iguais. Os diálogos também são bem “noir” e bem “Frank Miller”.
*
Os atores escolhidos para darem vida aos personagens são um capítulo à parte. Todos estão rigorosamente perfeitos, parece que saíram da revista para o set de filmagem. Nota mil para a seleção de elenco. Vemos um Mickey Rourke ressurgir das cinzas em um personagem que parece ter sido criado especialmente para ele. Consta que foi o Rodriguez quem teve essa sacação e acabou convencendo o Miller a comprar a idéia. Foi perfeito. Bruce Willis fez o seu personagem “tough guy” habitual. É a melhor coisa que ele sabe fazer. Rutger Hauer, Michael Duncan, Clive Owen, um surpreendente Elijah Wood, fazem pequenas mas significativas aparições. A mulherada gostosuda (fundamental em quadrinhos) parece que foi esculpida pelo traço do Miller, com destaque para Jessica Alba (anotem este nome), a “Susan”. Até o próprio Frank Miller faz uma pontinha como “Priest”. Outros atores que eu não lembro agora também estão ótimos no filme.
*
Os cenários, foram todos praticamente criados em computador, a partir do que já havia sido desenhado na revista. Os atores representaram diante de uma tela verde e depois foram inseridos na Sin City virtual. Tudo feito com a classe habitual do Mr. Miller.
*
Se tudo está tão divino e maravilhoso, qual é o problema então? É o seguinte: uma coisa é ver toda aquela violência num gibi; outra é assistir aquela profusão de sangue espirrando, braços, pernas, cabeças sendo decepadas, socos de arrancar pedaço, tiros tão generosamente distribuídos, mordidas arrancando nacos, shuriken (em forma da suástica nazista, olha o humor negro aí, gente!) se cravando na cara e na bunda, flechaços, granadaços...tudo ao mesmo tempo agora! O acelerador não alivia nem um pouco, da primeira à última cena a gente assiste empurrando o corpo de encontro ao encosto da cadeira e não há quem agüente isso. Chega a um ponto que vira tão banal que perde o impacto que deveria causar. A violência do recente cinema americano transformou em algo corriqueiro o que deveria chocar. Para se ter uma idéia, no gibi, existem mais cenas de nus, com personagens exibindo aqui e ali uma bunda, um peito ou até mesmo as “jóias da família”, como o “homem amarelo”. No filme, taparam as partes pudendas para o filme não cair na classificação “restrito para maiores de 18 anos”, o que nenhum blockbuster pode ser, sob pena de faturar minguada bilheteria. Agora vejam vocês, colocar uma granada em uma cabeça decepada, serrar membros, espirrar sangue para tudo que é lado não faz um filme entrar no “restricted”. Bundas, peitos e pintos fazem. Vai alguém dormir com um barulho desses...
*
Pois é. O que vemos freqüentemente em filmes de Tarantino e que em “Sin City” é explorado às últimas conseqüências não choca mais, ao contrário: faz-nos banalizar o que não deveria, de forma alguma ser banal.
Daí que eu saí do cinema um tanto dividido se tinha apreciado aquele espetáculo estético ou se deplorava aquela estética espetaculosa.
*
Para quem não viu, algumas recomendações: se você gosta de filme noir, corra para ver; se você não gosta de quadrinhos americanos, não vá assistir. Se você, gosta de ver a tela pingando sangue, vá urgente para a fila do Unibanco Arteplex (ou outro local de sua preferência); se você detesta filme violento, nem saia de casa.
M.S.
Baseado (e bota baseado nisso!) na graphic novel de Frank Miller, que também assina a direção junto com Roberto Rodriguez e “o diretor convidado” Quentin Tarantino, finalmente chegamos à mais completa e perfeita adaptação de quadrinhos para a tela.
Mas o filme é bom? É ruim?
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Não há como reduzir o diagnóstico a esta simplificação dual. Eu, pelo menos, saí do cinema sem saber, com clareza, como responder a esta pergunta.
Antes de abordar o filme, propriamente dito, vale a pena comentar sobre alguns dados curriculares a respeito do criador da história. Com certeza, serão úteis na compreensão da estética do filme.
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Frank Miller trabalhou como roteirista e desenhista nas duas maiores editoras de comics (quadrinhos) norte-americanas – a Marvel e a DC. Fora outros lançamentos em independentes. Com seu inegável talento, ele foi responsável pela reformulação de super-heróis das duas majors. Na Marvel, por exemplo, ele praticamente recriou o “Demolidor”, que era um herói meio sem graça, cuja revista estava prestes a ser cancelada. De roldão, ele deu outra consistência a vilões como o “Rei do Crime” e criou personagens secundários que fizeram enorme sucesso, como o Stick e a sensacional Elektra.
Na DC, para o Batman, ele criou a graphic novel “Cavaleiro das Trevas”, para muitos a melhor história em quadrinhos de todos os tempos (eu discordo, mas reconheço que é uma extraordinária revista). Posteriormente, em “Batman – Ano 1” (roteiro dele e desenhos de David Mazzuccheli), ele põe definitivamente o Morcegão nos trilhos. Miller ainda lançaria outras obras de fôlego e qualidade como “Ronin”, por exemplo. Há coisa de alguns anos, ele lançou a série “Sin City”, com o êxito habitual.
Mas ele não colecionou somente sucessos em sua carreira. Foi dele o roteiro de “Robocop 2”, aqui pra nós, uma bomba de mil megatons. Não sei se por dinheiro, ou por não resistir ao canto da sereia da DC Comics, ele lançou também o “Cavaleiro das Trevas 2”, uma bobagem do tamanho de Gothan City.
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É inegável que ele criou um estilo pessoalíssimo nos quadrinhos, baseado em muita violência com toques de humor e incluindo flertes com as artes marciais (especialmente a japonesa). Alguém identificou entre os cineastas alguém com estas características? Ponto para quem disse: “Quentin Tarantino”. Estava claro que mais cedo ou mais tarde seus caminhos iriam se cruzar. Pois se cruzaram em “Sin City”. Roberto Rodriguez (diretor de “O Pistoleiro” e “Pequenos Espiões”), da “tchurma” do Tarantino, serviu de elo de ligação entre os dois.
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O filme conta histórias de personagens que se entrelaçam no submundo da cidade de “Basin City”. Um tanto pela placa nos arredores, que está com o “B” e o “A” meio apagados (sobrando o “SIN CITY”, grande sacada), outro tanto maior pelos habitantes daquele lugar – polícia e políticos corruptos (marca pessoal de Miller), prostitutas, sujeitos durões, um pedófilo e até um canibal, aquela cidade faria Sodoma e Gomorra parecerem Disneyworld, de tanto pecado (“sin”, em inglês) que rola por lá .
Miller eleva à última potência o conceito de filme noir (aquele em que tudo de interessante só acontece a noite, aliás, em Sin City parece que a noite dura 24 horas). Neste quesito, o filme é brilhante. As cenas e os enquadramentos parecem ter usado a própria revista como story board: algumas são literalmente iguais. Os diálogos também são bem “noir” e bem “Frank Miller”.
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Os atores escolhidos para darem vida aos personagens são um capítulo à parte. Todos estão rigorosamente perfeitos, parece que saíram da revista para o set de filmagem. Nota mil para a seleção de elenco. Vemos um Mickey Rourke ressurgir das cinzas em um personagem que parece ter sido criado especialmente para ele. Consta que foi o Rodriguez quem teve essa sacação e acabou convencendo o Miller a comprar a idéia. Foi perfeito. Bruce Willis fez o seu personagem “tough guy” habitual. É a melhor coisa que ele sabe fazer. Rutger Hauer, Michael Duncan, Clive Owen, um surpreendente Elijah Wood, fazem pequenas mas significativas aparições. A mulherada gostosuda (fundamental em quadrinhos) parece que foi esculpida pelo traço do Miller, com destaque para Jessica Alba (anotem este nome), a “Susan”. Até o próprio Frank Miller faz uma pontinha como “Priest”. Outros atores que eu não lembro agora também estão ótimos no filme.
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Os cenários, foram todos praticamente criados em computador, a partir do que já havia sido desenhado na revista. Os atores representaram diante de uma tela verde e depois foram inseridos na Sin City virtual. Tudo feito com a classe habitual do Mr. Miller.
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Se tudo está tão divino e maravilhoso, qual é o problema então? É o seguinte: uma coisa é ver toda aquela violência num gibi; outra é assistir aquela profusão de sangue espirrando, braços, pernas, cabeças sendo decepadas, socos de arrancar pedaço, tiros tão generosamente distribuídos, mordidas arrancando nacos, shuriken (em forma da suástica nazista, olha o humor negro aí, gente!) se cravando na cara e na bunda, flechaços, granadaços...tudo ao mesmo tempo agora! O acelerador não alivia nem um pouco, da primeira à última cena a gente assiste empurrando o corpo de encontro ao encosto da cadeira e não há quem agüente isso. Chega a um ponto que vira tão banal que perde o impacto que deveria causar. A violência do recente cinema americano transformou em algo corriqueiro o que deveria chocar. Para se ter uma idéia, no gibi, existem mais cenas de nus, com personagens exibindo aqui e ali uma bunda, um peito ou até mesmo as “jóias da família”, como o “homem amarelo”. No filme, taparam as partes pudendas para o filme não cair na classificação “restrito para maiores de 18 anos”, o que nenhum blockbuster pode ser, sob pena de faturar minguada bilheteria. Agora vejam vocês, colocar uma granada em uma cabeça decepada, serrar membros, espirrar sangue para tudo que é lado não faz um filme entrar no “restricted”. Bundas, peitos e pintos fazem. Vai alguém dormir com um barulho desses...
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Pois é. O que vemos freqüentemente em filmes de Tarantino e que em “Sin City” é explorado às últimas conseqüências não choca mais, ao contrário: faz-nos banalizar o que não deveria, de forma alguma ser banal.
Daí que eu saí do cinema um tanto dividido se tinha apreciado aquele espetáculo estético ou se deplorava aquela estética espetaculosa.
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Para quem não viu, algumas recomendações: se você gosta de filme noir, corra para ver; se você não gosta de quadrinhos americanos, não vá assistir. Se você, gosta de ver a tela pingando sangue, vá urgente para a fila do Unibanco Arteplex (ou outro local de sua preferência); se você detesta filme violento, nem saia de casa.
M.S.