quarta-feira, setembro 26, 2007

Cosme e Damião


Dia 27 de setembro é dia de pegar doce. Pelo menos era no meu tempo... Eu chegava em casa, vindo do colégio, pegava um sacão e ia pra rua, atrás de guloseimas. Naquele tempo, no tempo das antigas ternuras, as mães não se importavam se os filhos passavam boa parte do dia vadiando pelas ruas. Não tinha perigo. Aliás, tinha muita mãe com filho nos braços disputando os doces com a gente nas filas e aglomerações onde se estavam distribuindo os saquinhos de papel com a imagem dos santos gêmeos...
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A propósito... A força da cultura popular é algo que não conhece limites, não é? Não há sequer comprovação de que tenha mesmo existido São Cosme e São Damião. Tudo bem, sei que existe uma tumba na basílica que o papa Félix IV construiu para eles em Roma e que presumivelmente contém seus despojos, mas não há certeza científica de que tenha mesmo havido dois irmãos santos, médicos cristãos, que faziam milagres e que por isso foram condenados, no Século III, ao tempo do imperador Diocleciano, a serem decapitados por ofenderem aos deuses. Há uma narrativa sobre dois médicos, que não se sabe se eram irmãos, cujos nomes eram Acta e Passio, que mais ou menos corresponde à história deles. A tradição diz que eles nasceram na Arábia, de pais cristãos. Tornaram-se médicos na Síria e praticavam a medicina, sem cobrar nada, na Egéia (na Ásia Menor). Isso numa época em que não existia plano de saúde, nem INSS. Tem pesquisador que garante que o mito de gêmeos heróis veio da mitologia greco-romana e que Cosme e Damião eram variações do culto pagão de Castor e Pólux.
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Para complicar mais ainda a situação, o culto aos gêmeos médicos foi assimilado sincreticamente no Brasil pelas religiões de origem afro. No candomblé, por exemplo, eles seriam os ibejis, que atendem aos pedidos dos fiéis em troca de doces e quitutes. É comum ver na Umbanda, representações dos dois santos acompanhados de um menino chamado “Doum” (do ioruba: Idowu), que protege as crianças com menos de sete anos.
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Bem, lenda ou não, era uma delícia correr atrás de doce no dia 27 de setembro. Em cada saquinho, surpresinhas que faziam a festa da criançada do meu tempo. Ah, que saudade dos doces de antigamente e que recheavam os sacos de Cosme e Damião! Tinha cocada, branca, preta ou rosa, pé de moleque, cocô-de-rato, mariola, doce de abóbora em forma de coração, doce de batata, dadinho, bananada em forma de triângulo no palito, pingo de leite, chiclete Ploc e/ou Ping-Pong, maria-mole, delicado, jujuba, bala Juquinha, bala de tamarindo, bala Toffe, confetti, suspiro, caramelo Embaré, moeda de chocolate, amendoim salgado ou doce, geléia de duas cores (amarela e vermelha), pirulito bola, torrone, paçoca... A cárie e a dor de barriga estavam garantidas!
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Eu gostava de pegar doce na macumba. Quer dizer, na Tenda Espírita Pai João, cuja proprietária, a Dona Eliete, se esmerava em rechear os saquinhos e ainda dava brinquedos! Não era à-toa que existia uma baita fila no dia em que se fazia lá a distribuição de cartões. (Parêntesis: tinha gente que, para evitar muita confusão, saía pela rua distribuindo cartões que indicavam o dia e a hora em que se faria a distribuição dos doces. Na verdade, só antecipavam a confusão, pois para pegar um dos cartões valia até pisar no pescoço de uma velhinha paralítica que atravessasse no caminho...)
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Quando eu fiquei mais rapazinho, além dos doces eu ia atrás de outros prazeres. Tinha algumas meninas taludinhas, que entravam na balbúrdia, disputando os saquinhos. E nós, canalhas juramentados, nos enganchávamos na bunda delas, tirando sarros homéricos.
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Lembro que uma vez eu me enganchei atrás da bunda de uma das irmãs do Jurandir que foi uma coisa louca! Acho que a safada estava bem gostando da situação, visto que ela até empinava a rabiola para facilitar as coisas. Quando acabou a confusão, eu estava com um saco de doces na mão e um “drops” dentro do short. Todo mundo reparou. Os meus amigos ficaram me sacaneando, mas por pura inveja. Naquela época, a única possibilidade de sexo para nós, do alto de nossos 12, 13 anos, era a conhecida cantora cubana, a “Palmita de la Mano”... Se é que vocês me entendem...
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Depois que enchíamos o sacão com os muitos saquinhos, era comum a gente se sentar e trocar alguns doces que não nos agradavam por nossos preferidos. Tinha gente que não gostava de cocô-de-rato (nome original: flocos adocicados de arroz) e de pipoca americana. Nem de “colchão-de-mola” (maria-mole entre dois biscoitos quadrados). Eu gostava de tudo. Para mim, se colocasse açúcar em tijolo eu morderia e ainda acharia uma delícia! Tinha casa cuja dona era mais pobrezinha e colocava nos sacos uma mariola, um pedaço de bolo solado e duas balas. Ela tinha feito promessa aos santinhos e dava doces conforme suas possibilidades. Eu não me importava. Emburacava em tudo!
Uma coisa interessante: um amigo meu, criado em São Paulo, disse que isso não tinha por lá. Que só foi tomar conhecimento desse negócio de dar doce de Cosme e Damião no Rio. Será que é um costume local?
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Hoje, eu não vejo mais distribuição de doces nas casas. Pelo menos, não na forma como era no meu tempo. O povo tem medo. Com a violência cotidiana não se brinca. E ainda tem os carros nas ruas, atualmente mais numerosos que na minha época. As mães já não deixam os filhos pequenos saírem na aventura em busca dos saquinhos de guloseimas. Putz... Que bosta de vida estas crianças estão tendo, né não? Quando tiverem a minha idade, que antigas ternuras terão pra contar?
M.S.
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Na Rádio Antigas Ternuras, você ouve “Gente Humilde”, letra maravilhosa de Vinícius e Chico Buarque, para a belíssima música de Garoto. Na voz, a fantástica Ângela Maria. Uma música que fala de casas simples, com cadeiras na calçada, exatamente como as que davam doces, no meu tempo de moleque... Aí me dá uma vontade de chorar...

sexta-feira, setembro 21, 2007

Dia de corno


Aqui no Rio, esta expressão é usada como sinônimo de “um dia de cão”, um dia muito difícil etc. Pois é. Eu tive um dia de corno, mas não foi nem um pouco ruim. Ao contrário: foi muito divertido.
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A Cia. teatral em que atuo fez num domingo desses uma apresentação no Aterro do Flamengo (vide fotos). Teatro de rua, mesmo, onde apresentamos, em duas sessões, algumas improvisações em cima da peça “George Dandin”, de Molière.
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Na peça, o personagem-título é um homem simples que enriqueceu e não quis se casar com uma mulher de sua condição social. Para ascender na sociedade, tratou de combinar casamento com a filha de uma família de nobres decadentes, em troca do pagamento das dívidas que eles tinham contraído. Um nobre fidalgo que mudou-se para a vizinhança começou a cortejar a esposa de Dandin, Angélica, que por vaidade, aceitava a corte do galã e se encontrava com ele às encondidas. George Dandin descobria sempre as armações da esposa, mas nunca conseguia provar nada perante seus sogros, que a cada tentativa ainda o humilhavam e o obrigavam a pedir desculpas à mulher e ao paquerinha dela.
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O diretor me escolheu para o papel de George Dandin, ou seja, para fazer o tal marido traído. E foi muito divertido atuar em área aberta, diante de passantes, de crianças, de pessoas que estavam por ali, naquela área de lazer. Fizemos até duas apresentações, com muito sucesso.
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Devo ter ido bem no papel, uma vez que os espectadores confundiram o ator com o personagem e só me chamavam de “o corno”.
- Ô corno, parabéns!
- Ô corno, tira uma foto aqui com a gente. Mas não encosta em mim, não, que isso pega!
E para deixar a coisa mais divertida, numas das apresentações apareceu um bebum, um cara que tinha tomado todas e estava a fim de confraternizar com o elenco. Aliás, só com o ator que fazia o papel principal.
- Olha o corno aêêê, gente!
- Fala corno!
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Nessas apresentações ao ar livre sempre aparece um desses exus brabos para fazer graça. E a gente tem que aturar... Como o meu aniversário seria dois dias depois daquela apresentação, os atores da Companhia me fizeram uma festinha ali, mesmo. Teve bolo, refrigerante, parabéns...
E o bêbado voejando em volta:
- É aniversário do corno? Vamos cantar parabéns pro corno!
- Ô corno, me dá um pedaço desse bolo aê...
- Ô corno, me arruma um copo de coca-cola...
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Eu levava tudo na esportiva, é claro. De vez em quando até soltava uma piadinha também. Mas o ponto alto daquela minha “cornitude” foi quando um senhor veio falar comigo:
- Parabéns. Estava muito bom.
Eu agradeci.
- Obrigado. Fico feliz pelo senhor ter gostado do nosso trabalho.
- Mas você sabe a origem dessa expressão, de chamar um marido traído de corno, de chifrudo?
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Putz! O cara me pegou! Eu não sabia e confessei isso pro cara, para ouvir em resposta:
- Mas como é que vocês falam as coisas sem pesquisar, sem saber a origem do que vocês falam?... Vocês tinham que procurar saber a origem dessas expressões!
Pois é. O cara falou uma coisa dessas pra mim! Tive que sorrir amarelo e admitir que não sabia, que, sim, deveria ter pesquisado, parará, pereré...
(Bem feito, Seu Marco! Quem mandou não pesquisar as expressões que fala!)
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E aí o camarada me contou de onde vinha a expressão.
Na antigüidade, houve o tempo de Átila (o rapaz aí da ilustração) e seus hunos, um povo bárbaro que habitou a Europa Central no norte dos Bálcãs (mais ou menos onde hoje está a Bulgária, a Sérvia, por ali), por volta do Século 5 depois de Cristo. Essas tribos bárbaras eram guerreiras ferozes. Não foi à toa que Átila passou à História como “o Flagelo de Deus”. Seus soldados usavam capacetes de ferro, alguns adornados com chifres, parecidos com os utilizados pelos vikings.

Átila tinha um general famoso por sua ferocidade e sua cara de mau. Ele usava um capacete com dois enormes chifres o ladeando. O curioso é que embora o tal general huno fosse brabo feito cão danado, a mulher dele era... digamos... muito generosa com os outros homens. Na verdade, ela dava mais que chuchu na serra! Na ausência de seu marido, era só pegar uma senha, entrar na fila que ela servia o hamburgão para a rapaziada.
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A fama de vadia da mulher correu chão, sem que o marido feroz soubesse, é claro (corno brabo é terrível! A sorte dele era ser “corno-Ferrari”: os casos da mulher eram muito rápidos. Também poderíamos dizer que ele era um “corno-galo”: aquele que tem chifre até nos pés. Na verdade, ele era um “corno-porco”: aquele que só come o resto)
Certa vez, um dos soldados falou pro outro:
- A mulher daquele ali dá pra todo mundo!
O outro quis saber:
- Qual?
- Aquele ali, o mais chifrudo...

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Claro que o tal senhor não me contou a história assim. Eu ouvi e estou agora recontando com minhas palavras, do meu jeito. Se a história é verdade, não sei. Mas é como história de corno... Sempre tem um fundo de verdade...
M.S.

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Agradeço muitíssimo aos amigos pelas mensagens de Feliz Aniversário nos comentários do último post. Alguns perceberam a "cola" que eu dei no perfil ali, no alto do Blog. Obrigado pelo carinho. Vocês sempre serão minhas eternas ternuras.
Para quem quer saber quantos aninhos eu completei, segundo este site, que dá a idade da gente em outros planetas do Sistema Solar, eu sou um jovenzinho em Marte, um idoso em Vênus e uma criança de colo em Saturno. Bem, aqui na Terra, tem época em que me sinto adolescente, em outra, um velho gagá e, na maior parte do tempo, queria que me fizessem bilu-bilu...
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Na Rádio Antigas Ternuras, você ouve “Nos bailes da vida”, com o meu, o seu, o nosso Milton Nascimento. Essa música é um hino em homenagem a todos os artistas que, com a roupa encharcada e a alma repleta de chão, vão aonde o povo está...

terça-feira, setembro 18, 2007

Tô que tô


Eu sei que muitos que me dão o prazer de ler estas mal tecladas linhas tem especial apreço pela seção “a origem das expressões de uso corrente” que volta e meia posto aqui. Para agradar a estes meus diletos amigos leitores, lá vamos nós para mais uma viagem nesse tema.
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E já que eu estou empolgado, começo por explicar a origem da expressão:

Com a corda toda.

Aliás, estou atendendo ao pedido da leitora Maristela, que tão gentilmente me fez esta sugestão num dos comentários que deixou aqui.

Antigamente, os brinquedos que possuíam movimento eram acionados torcendo um mecanismo em forma de mola. Ou torcendo um elástico, que ao ser distendido, fazia um brinquedo se mexer. Ambos mecanismos eram chamados de “corda”. Logo, quando se dava “corda” totalmente em um brinquedo ele se movia de forma mais agitada e frenética. “Com a corda toda” passou a significar alguém com bastante ânimo, muito agitado para fazer algo. O popular “tô que tô” ou “tá que tá”.

Modernamente, os brinquedos de corda foram sendo substituídos por brinquedos movidos a pilha. E a língua acompanhou esta transformação. Há quem chame os agitadinhos de plantão de serem pessoas “pilhadas”. Quando se quer mexer com alguém, fazê-lo sair de uma postura calma, diz-se: “botar pilha no cara” (só não me perguntem onde se enfiam as pilhas no sujeito!). Mas toda a agitação começou no velho mecanismo de corda.
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Para dar exemplo de um figura histórica que vivia “com a corda toda”, recorro ao célebre Ruy Barbosa, ilustre jurista baiano, conhecido pela cultura, pelo conhecimento e pelo tamanho do cabeção.
Era comum ver o nobre senador com a corda toda, envolvido em pendengas, debates e desafios.
E é dele a autoria da outra expressão que esclareço neste post:

A pressa é inimiga da perfeição.

Essa frase antológica foi dita pelo grande cabeçudo ao comentar a rapidez com que se redigia o Código Civil Brasileiro, lá nos idos de 1915. Aliás, esse tipo de pressa ao se fazer as coisas é comum no Brasil. Deixam tudo para a última hora, faz-se de qualquer jeito, apressadamente, e depois a gente vê a merda que saiu. No governo do presidente Lula Molusco há vários exemplos de decisões tomadas no calor de uma discussão e que depois tem de ser revistas.

De forma geral, obras públicas de engenharia no Brasil costumam ser erigidas sem o necessário planejamento. Aí depois se leva mais tempo e se gasta mais dinheiro para sanar o que não tinha sido previsto antes. Na Europa e EUA, uma grande obra leva dois anos em planejamento e uns seis meses na execução. E dura pra toda vida. No Brasil, gastam-se seis meses na fase de planos e um porrilhão de anos na construção, com custos se elevando a cada novo e necessário acerto.
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Mas eu falava do nosso Ruy. A moçada estava querendo um Código Civil “para ontem” e ele pedindo calma com andor que o santo era de barro e podia quebrar ao menor solavanco. Foi quando ele disse a memorável frase e ainda acrescentou um adendo, que desapareceu no uso corrente: “a pressa é inimiga da perfeição e mãe do tumulto e do erro”. Acho que tiraram a segunda parte da frase para não botar mãe no meio e para não admitir possibilidade de erro (coisa que brasileiro odeia admitir...).
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No dia em que Ruy disse isso, certamente estava “com a corda toda”. E olhem que ele até falou em português compreensível! Um cara que para dizer “o sol nasceu”, falava: “o astro-rei despontou majestático na fímbria do horizonte” até que pegou leve na tal frase.
Embora grande parte de seus discursos tenha se transformado em exemplos de oratória e erudição, alguns deles estavam mais para “prosopopéia flácida para acalentar bovinos” ou “colóquio lânguido para fazer repousar o gado vacum” (Conversa mole ou história pra boi dormir).
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Você gostou desse modo empolado de falar? Pois adote-o. Vai ser um baita sucesso quando, por exemplo, você entrar numa festa, com a corda toda, e ver que a moçada está disposta a encher a caveira e beber todas. É só dizer bem alto: “Aê...O oríficio circular corrugado, localizado na parte ínfero-lombar da região glútea de um indivíduo em alto grau etílico, deixa de estar em consonância com os ditames referentes ao direito individual de propriedade!”.
Diga isso sem pressa (para não sair imperfeito) e a moçada vai entender que uma certa parte remota da anatomia de bêbado não tem dono.
M.S.

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Estou com um texto meu no sempre interessante blog Playground dos Dinossauros. É sobre antigos jingles do Rádio e da Televisão, com direito a vê-los inclusive... Pois é. Quem quiser me dar a honra da leitura...
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Na Rádio Antigas Ternuras você ouve “Assanhado”, chorinho maravilhoso do nosso eterno “São” Jacob do Bandolim. Eita, que hoje eu estou quem nem essa música esplêndida! Isso é bom DEMAIS!

quarta-feira, setembro 12, 2007

Dia de matar o porco


Naquele dia especial, a casa se alvoroçou desde muito cedo. O sol nem tinha se espreguiçado no horizonte e as mulheres já estavam agitadas. Era dia de matar o porco.
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Toda aquela agitação acordou o menino, que mal tinha pregado os olhos naquela noite. Ele gostava daquele porco. Dava banho, amarrava lacinho e uma vez até passou perfume “Cashemere Bouquet”, recebendo imediatamente um esporro da mãe a quem ele não tinha pedido permissão para fuçar na penteadeira.
- Onde já se viu? Pegar o meu perfume para passar em porco?
Mas fazer o quê? Ele gostava dos bichos! Adorava a sua cachorrinha, era fascinado pelo galo branco e meio doido que andava pelo quintal, agitando a cabeça de lado, como se cabeceasse uma bola imaginária. Quando o menino sentava debaixo de uma das muitas árvores, o galo vinha, de onde estivesse, e deitava a cabeça no colo dele, esperando o cafuné, que nunca era recusado.
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Mas já tinha sido decidido, desde uma semana antes, que o porco ia falecer naquele dia. Na véspera, o menino se despediu do bicho, que nem percebeu que estava condenado a morte no dia seguinte. Será que não percebeu mesmo? Ele tinha um jeito engraçado de mexer o focinho rosado de tomada. E, foi impressão ou ele estava com o olhar meio triste quando o menino lhe coçou a orelha?
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E o garoto quis ver, quis participar de tudo. Tão apressado, que quase espremeu todo o tubo de pasta Kolynos na hora de tirar o gosto de sono da boca. Foi para a cozinha e de cara ganhou um passa-fora da mãe. Ali não era lugar de criança! A empregada riu e ainda implicou com ele: “fique perto de quem come e longe de quem trabalha!”

Foi para o quintal. Lá, via-se algumas pessoas em torno de um fogareiro a lenha feito com tijolos, onde ferviam uma lata quadrada com a inscrição “gordura de coco Dunorte” e outra de “Óleo Salada”, ambas cheias de água borbulhante. Os homens riam e bebericavam uma caneca de ágate com marcas escuras no ferro esmaltado. E riam, insensíveis ao destino do animal, fora do cercadinho, com as patas amarradas. O garoto preferiu não olhar dentro dos olhos do porco. O bicho estava mexendo o focinho, com jeito de quem não estava entendendo nada.
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Os homens aguardavam a chegada de alguém. Justamente, aquele que iria dar cabo do condenado. Eis que ele chega, com passo devagar, valorizando a sua função. Não tinha pressa. Colocou a conversa em dia, riu com os homens, pegou uma das canecas com café, sorvendo a beberragem com olhos semicerrados na direção de sua vítima.
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Tinha chegado a hora. Ele pegou a sua bolsa de napa, que já tivera seus bons dias, e retirou de lá um facão e um punhal com cabo de madrepérola esverdeada. O menino acompanhava tudo com olhos vívidos. O tal homem retirou da bolsa uma pedra escura e ovalada e pôs-se a amolar pacientemente o punhal. Depois o facão. Em cada um deles, ele mediu o fio do gume com o polegar grosso e encardido. Nenhum gesto era esperdiçado. Via-se logo que ele fizera cada movimento daquele ritual muitas vezes.
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Com o punhal na mão, dirigiu-se até o quadrúpede amarrado no canto. Ajudaram-no a colocar o bicho sobre uma mesa gasta. O suíno protestou. Gritava num som agudo, clamava aos céus que tivesse piedade, que o poupasse. Em vão. O homem levantou-lhe a pata esquerda e, num movimento rápido, cravou o punhal até o cabo esverdeado desaparecer num jorro escarlate. Um último grito parou no ar. O porco estrebuchou e não mais mexeu o focinho rosado de tomada.
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Ato contínuo, os homens entraram em ação. Água fervente sobre a carcaça do moribundo, uma faca começou a raspar-lhe os pelos. O sangue não parava de correr da ferida na altura do coração do porco e já era prontamente recolhido num vasilhame. Do porco só se perderia o berro. Mas nem este foi perdido de todo. Ficou gravado nos ouvidos do menino para sempre.
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O homem que matara o animal começou a trinchar a carne com o outro facão. Gestos medidos de assassino profissional que conhece o seu ofício. Pedaços pequenos da pele com gordura iam sendo jogados com desleixo dentro de uma das latas que tinham fervido a água usada para escanhoar o porco. À medida que esquentava os nacos de gordura, eles se derretiam formando um caldo grosso. E boiando nele, pedaços de torresmo e pururucas bailavam na fervura. Uma das mulheres vinha com a escumadeira e pescava um a um. Ela olhou para o menino:
- Quer um?
Ele aquiesceu.
- Cuidado. Está muito quente.
O petisco viajava da palma de uma mão para outra, entre jatos de ar assoprado até que finalmente esfriou. O garoto colocou na boca o pedaço do antigo amigo, deixando escapar o croc-croc das mordidas.
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Em pouco tempo, o bicho estava retalhado e com postas já destinadas:
- Esta é para Dona Filhinha, esta para o Seu Leonardo...
Quem juntara lavagem fazia jus a um pedaço do porquinho.
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Depois do esquartejamento, água para limpar tudo. Os homens e mulheres que vieram ajudar preparavam a saída. O matador, já tinha ensarilhado seus objetos de morte. No chiqueiro, o silêncio do ausente substituído pelo odor de feijão com costelinha, a devassar narinas e instilar apetites.
A tudo o menino acompanhava com olhos de nada perder. Ele nem imaginava que num certo dia nublado, ele despejaria lembranças sobre as teclas, contando esta história a outros que valorizam antigas ternuras como ele.
M.S.
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Tive o máximo prazer e honra de receber das amigas blogueiras Nena
e M. Martha
o prêmio Schmooze, criado pelo blog do Mike
e que tem por objetivo destacar blogs que se dedicam a difundir a amizade e a boa comunicação na rede. Segundo o criador do prêmio, os “schmoozers têm uma habilidade natural, dentro e fora da blogosfera, de fazer amigos novos ao longo do caminho”. Com muita alegria eu fui escolhido para receber o Schmooze. E agora me cabe seguir as regras do post-corrente:
1. Se, e somente SE, você receber o "Thinking Blogger Award" ou "The Power of Schmooze Award", escreva indicando 5 (cinco) blogs que tem esse perfil "schmoozed".
2. Acrescente um link para o blog que te indicou e para o blog do Mike, criador do prêmio, para que as pessoas conheçam a origem do post-corrente.
Meus indicados (difícil... muito difícil indicar só cinco):

Luzes da Cidade
O Apanhador de Sonhos
Politicamente Incorreto
Oncotô
A Sul

Aos indicados, colem o selo e sigam e divulguem as regras, caso queriam participar. Vocês são schmoozers! E são ótimas pessoas. Eu me sinto honrado em conhecê-los.
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Na Rádio Antigas Ternuras, você ouve “Pedacinho do céu”, do e com o sempre fantástico Waldir Azevedo.

quinta-feira, setembro 06, 2007

Botando o preto no branco


Dia desses, eu estava lendo o sempre excelente blog do Dilberto, líder do clã dos Morcegos, família que muito gentilmente me acolheu, e vi a homenagem que ele fez ao seu clube do coração. Não vou citar aqui o nome do clube porque não o cito a não ser pejorativamente, visto ser o grande rival do meu amado Mengão. Mas vocês já devem saber de qual time falo... Ele tem o nome de um almirante português conhecido por ser cruel com seus comandados e ter cometido atrocidades na Índia, depois de ter trilhado o caminho marítimo até lá, no Século15.
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Pois bem. Disse o meu caro primo Dilberto que este time “foi o primeiro a ter jogadores negros no elenco profissional”. Eu discordei e apresentei argumentos que desfazem este equívoco. Ele contra-argumentou afirmando ter lido esta informação vinda do jornalista Sergio Cabral (pai do atual governador do Rio), que é reconhecido como pesquisador cultural. E na verdade o é e dos bons. Eu o tenho como uma grande influência no meu estilo de escrever perfis biográficos, assunto em que ele é mestre.
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Acredite, caro primo Dilberto: eu já ouvi o Sergio falar isto, assim como muitos outros e sempre fiquei embatucado com esta afirmação. Você e os torcedores do seu time proclamam isto como uma grande vantagem, algo a ser glorificado. E eu sempre achei isso muito estranho. O seu clube tem óbvias ligações com a colônia portuguesa e ao longo da História, os portugueses nunca se caracterizaram pela tolerância racial. Foram os maiores escravocratas da História da humanidade. A quantidade de negros que eles capturaram ou compraram na África ao longo dos séculos 15 ao 20 – sim, em meados do século 20 eles exploravam mão-de-obra escrava em São Tomé e Príncipe - ultrapassou a casa dos milhões. Certamente, se admitiam negros na equipe, nos anos 20 do século passado não o fizeram por serem “democratas” ou “admiradores” da raça negra.
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Aqui faço uma advertência: eu não estou dizendo que os portugueses são racistas ou escravocratas. Falo como estudioso de História. Há alguns mui queridos lusitanos que aqui freqüentam e por quem tenho enorme carinho e que não são racistas, nem caçam escravos. Falo de tempos idos. Ao longo dos séculos 16, 17 e 18, espanhóis, ingleses, franceses e holandeses também escravizaram nossos irmãos negros d’África. Só que os portugueses o fizeram por mais tempo, dominando o tráfico negreiro no Atlântico Sul. E no início do Século 20, quando o Brasil tinha abolido a escravatura há cerca de uns 30 anos antes, acho difícil que portugueses fossem “generosos” com uma raça que por tanto tempo foi explorada por eles.
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Com esta linha de raciocínio na cabeça, fui pesquisar, ler, entrevistar, conversar com estudiosos, para ver o quanto de verdade existia na afirmação de que o clube da cruz de Malta fora o primeiro a admitir negros no seu elenco. E constatei que ele não foi mesmo o primeiro. Nem o segundo. Nem o terceiro. Nem o quarto. Nem mesmo o quinto!
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O primeiro clube de futebol carioca a incorporar negro na equipe foi, obviamente, um time proletário: o Bangu Atlético Clube, formado por funcionários da Fábrica de Tecidos Bangu. Isso em 1905. E entre estes, havia um negro, cujo nome era Francisco Carregal (veja o rapaz na foto publicada na revista O Malho, de 1905), o que despertava indignação nos times adversários, todos aristocratas e de famílias tradicionais.
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Em 1907, um destes times tradicionais, o Botafogo Futebol Clube, colocou para jogar um negro.

Os clubes adversários (Fluminense, Paysandu, Rio Cricket principalmente) declararam que não disputariam nenhuma partida contra alguém de cor negra. O rapaz teve a sua inscrição no clube cancelada e foi obrigado a sair do time. Curiosamente, em 1915, o Fluminense admitiu um rapaz nitidamente mulato, de nome Carlos Alberto. Este, se envergonhava de sua origem e tentava disfarçar a cor de sua pele com, acreditem, pó-de-arroz!!! A anta nem imaginou que o suor faria a maquiagem escorrer, ficando muito pior do que antes. A torcida adversária não perdoou: chamava os jogadores do Fluminense de os “pó-de-arroz”. A torcida tricolor não se importou e até aceitou o apelido. Tanto que o pó-de-arroz é símbolo do time até os dias de hoje (e garanto que muito tricolor não sabe da origem do apelido...)
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Antes do mulatinho tricolor, o time do Andaraí, também de proletários e operários, por volta de 1910, já tinha escalado afrodescendentes no seu time.
Em 1918, o América Futebol Clube entronizou um jogador negro, cujo apelido era Manteiga. Também causou um certo desgaste entre os adversários.
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Vejam bem: o futebol era um esporte aristocrático. Guardadas as devidas proporções, era como hoje é o tênis. As torcidas eram comportadas, as senhoras freqüentavam os jogos (chamavam de matches), era tudo muito cheio de fru-frus. O primeiro jogo a causar uma certa comoção foi a disputa do Campeonato Sulamericano de 1919, em que o Brasil se sagrou campeão contra o Uruguai, com um gol de Friedenreich. O jogo ficou tão famoso que Pixinguinha compôs um chorinho com o título de “1x0” em homenagem à conquista.
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Pois bem. O clube originário da colônia portuguesa já disputava regatas desde 1898. Este sim era o verdadeiro esporte das “multidões” aqui no Rio de Janeiro. Em 1915, resolveu também disputar o campeonato de futebol. As primeiras participações, com o time integrado de membros da colônia, foram ridículas. No primeiro jogo já tomaram uma goleada homérica. Os portugueses que patrocinavam o time, viam entre os seus empregados negros, nos muitos armazéns de secos e molhados, vários com habilidade bastante desenvolvida no trato com a bola. Como originariamente o clube cruzmaltino sempre foi ressentido com as gozações dos garotões da Zona Sul (sua própria fundação foi feita em cima deste rancor), queriam entrar na disputa para ganhar. Os lusos pagavam "um por fora" aos seus empregados negros para disputarem os jogos com a camisa do clube. Até os deixavam treinar, aliviando a jornada de trabalho deles. Isso por volta de 1920.
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(Na foto, o time do Bangu, em 1919, com negros e operários)
A partir daí, criou-se a balela de que o clube da colônia portuguesa era “democrático” e admitia pessoas de todas as raças e de qualquer condição sócio-econômica. Começaram a disseminar que o clube da cruz foi o primeiro a admitir negros, o que é uma deslavada mentira. E uma grande bobagem, visto o contexto histórico da época ser totalmente diferente.
Recentemente, saiu no jornal O Globo uma matéria contando o que descrevi aqui: clubes proletários como Bangu e América e até aristocráticos como Fluminense e Botafogo já admitiram negros. Hoje, os cruzmaltinos já não dizem ser os “pioneiros”. Afirmam que foram “o primeiro clube a ser campeão com negros no plantel”, o que é bem diferente de ser o pioneiro, não é?
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Eu não estou inventando nada disso. Quem quiser se aprofundar no assunto, recomendo o livro “O Negro no Futebol Brasileiro”, de Mario Filho. Lá, ele diz com todas as letras que o papel de pioneiro em relação à aceitação de futebolistas negros em seus quadros é equivocadamente atribuído ao clube da cruz de Malta (na verdade, cruz pátea ou patée...).
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E mais digo eu: Aos que dizem que o clube era “permissivo” e “democrático”, deixo uma pergunta: se um daqueles negros que trabalhavam nos armazéns e jogavam no clube se apaixonasse por uma filha de um português dirigente do time, ele permitiria que a filha se casasse com o rapaz “de cor”? Se eram tããão democráticos assim, deveriam permitir. Vocês acham que eles permitiriam?
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Escrevi isto para mostrar a vocês que não se deve engolir sem mastigar bem direitinho certas verdades que andam por aí. Não é só em termos de futebol. A História não é uma disciplina das Ciências Exatas. Ela é absolutamente dinâmica, novas descobertas acontecem todo tempo. Tudo o que se de fazer é estudar, pesquisar. É o que, modestamente, costumo fazer.
M.S.
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O Antigas Ternuras recebeu da Bruxinha, do sempre excelente blog Labirintos do Sol e da Lua, mais um prêmio, pelo qual agradeço muitíssimo pela lembrança e pela gentileza. Conforme a regra do post-corrente, indico outros cinco que merecem, até mais do que eu, este prêmio. Só cinco... Aí é que complica... Mas vamos lá:
- Luz de Luma
- Balaio Porreta
- Loving Me for Me
- Nãnaninanena
- Transmimentos de Pensações
Estes meus indicados devem agora indicar outros cinco que façam jus ao prêmio e publicar a imagem do selo.
Agradeço igualmente à amiga Samara Angel pelos selos que me ofertou. Uma delicadeza que me deixa comovido. Obrigado, do fundo do coração!
Ainda nos agradecimentos, muito, muito obrigado a Fernanda Ruiz, pela minha indicação para o “Blog Day 2007” como um de seus favoritos. Eu me sinto honrado pela escolha e muito feliz com a indicação.
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Na Rádio Antigas Ternuras, você ouve o excepcional Luciano Pavarotti, cantando “Nessum Dorma”, da ópera Turandot, de Puccini. A música não tem nada a ver com este post, mas fica como uma homenagem ao grande tenor, recém-falecido, que tornou pop muitos clássicos. E deu uma interpretação magistral, emocionante a esta ária.

domingo, setembro 02, 2007

Pés no chão


Noutro dia estava estirado no sofá da sala, escutando cabelo crescer, como costumo fazer, e pensei: "há quanto tempo não ponho meus pés na terra!" Nossa! Mas tem tempo mesmo!
E pensar que eu fui um guri que cresceu andando descalço, criando cascão na sola... Hoje, se eu correr sem sapatos num gramado vai cortar a sola dos pés feito eu estivesse pisando em giletes.
Talvez até seja desconfortável eu botar a lancha no chão cru... Mas ainda quero fazer isso. E há de ser em breve. Temos chacras importantes na sola dos pés que precisam carregar/descarregar energias na terra.
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Tem tanta coisa que eu fazia e deixei de fazer... Jogar futebol, subir em árvore, comer fruta no pé, jogar pedra na superfície de um lago e vê-la quicar no mínimo três vezes...
Com o tempo, a gente larga velhos hábitos e adquire novos, mas aí bate uma tremenda saudade dos antigos...
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Preciso, quero fazer algumas coisas que fazia nos antigamentes. Vou comprar um toca-discos só para ouvir meus discos de vinil. Noutro dia me bateu uma vontade de ouvir "Tell me you once again", com o Light Reflections. E também "Got to be there", do tempo em que o Michael Jacson era preto. Tive saudades do tempo em que eu ia ouvir fita cassete na casa do meu amiguirmão Luiz e ainda filava o lanchinho que a mãe dele, Dona Aída, fazia.
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Aliás, será que minhas antigas fitas cassete ainda tocam? E o meu gravador Sanyo velho de guerra, será que ainda funciona? Caraco... Quantas dores de amores mal-sucedidos ficaram impregnados naqueles botões de controle... As antigas canções anestesiavam um coração sangrando. E serviam de trilha sonora para rabiscos juvenis no papel, como estes:
“O sol pálido deixou sobre minha mesa algumas pequenas sementes de luz
Queria saber a magia exata que fizesse germiná-las.
Então eu guardaria no olhar o brilho dessas pétalas luminosos.
E quando eu novamente te visse
Teria só pra você um buquê nos olhos de moleque tímido.”


(poema que eu fiz não sei quando, dedicado a não sei quem...)
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Também me bateu vontade de ir na Casa do Alemão e comer aquele doce Mil Folhas que lá é inigualável. Quando era moleque, de vez em quando minha mãe levava a prole para ir comer sanduíche de lingüiça e comer Mil Folhas. O sanduba hoje dispenso, já que sou vegetariano. Mas o doce...
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Preciso arranjar um tempinho pra reler meus velhos gibis. Eu tive que me desfazer de muitos, por conta de espaço. Mas ainda tenho vários... Inclusive tenho um Ferdinando e a Família Buscapé (Lil’ Abner no original) que eu trouxe de Nova Iorque há dez anos e não li. Onde eu botei as minhas revistas antigas do Batman? E a Turma do Pererê, que está ali na estante, ao alcance da minha mão...
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É... Preciso botar os meus pés no chão. Sentir a energia do solo. Mas não consigo tirar a cabeça das nuvens... E o meu coração, que paira entre o céu e a terra, acende um farol para as gentes, e bate as asas de pássaro no rumo do sol. Porque amanhã sempre será um novo dia...

M.S.
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Na Rádio Antigas Ternuras, você ouve “Tell me once again”, com o inesquecível conjunto Light Reflections (por onde eles têm andado?...).