quarta-feira, outubro 28, 2009

De conversa em conversa


Foi lançado recentemente o livro “Conversando é que a gente se entende”, do meu caríssimo amigo Nelson Cunha Mello, grande professor, grande ator, com quem tive a honra de contracenar muitas vezes. Aliás, durante a última peça em que atuamos juntos ele já me falava de um livro que estava aprontando sobre expressões coloquiais brasileiras. Eu estava terminando o meu livro “Popularíssimo – O ator Brandão e seu tempo” e ele o dele. Nós conversávamos sobre estas expressões e eu dizia que também era um aficionado, gostava de pesquisar e coletar as origens destas frases deliciosas que falamos tão habitualmente quase como um bordão e, em muitas vezes, nem sabemos o que significam. Por ser um estudioso de mitologia grega, acabei descobrindo muitas origens destes ditos. Ao ler autores como Câmara Cascudo, Deonísio da Silva entre outros, acabei arrebanhando um vasto repertório de explicações das expressões. Quem me lê aqui há mais tempo sabe que minhas explicações para estas expressões constituem seção fixa deste blog. Já fui até pauta de um jornal de Vitória, Espírito Santo, que fez uma matéria comigo sobre estes ditos e minhas histórias.
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Mas quero falar sobre o livro do meu amigo Nelson, que compilou mais de dez mil destas expressões, fazendo um dicionário fundamental, importantíssimo, que haverá de elucidar a quantos se interessem por saber o significado e o sentido de frases como “não vale o que o gato enterra”, “mais feliz que pinto no lixo” e “quando o cara está com azar, cai de bunda e quebra o pau”, por exemplo.
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Há uma parte do livro em que o Nelson esclarece sobre a origem de várias expressões, assim como faço aqui e esta parte é deveras interessante. Você acha de tudo lá. Desde bordões de televisão, passando por frases célebres do Teatro e da Música Popular Brasileira até frases antigas usadas há bastante tempo.
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E eu aprendi muito no livro! Tenho certeza de que quem lê-lo vai aprender também. Querem um exemplo? Sabem de onde vem a palavra “ce-cê”, como sinônimo de inhaca debaixo do suvaco? Das iniciais de “cheiro do corpo”. Diz o livro que esta palavra foi popularizada no início dos anos 40 do século passado, por intermédio da propaganda de um sabonete desodorante. Eu não sabia dessa...
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Outra ótima: “por um triz”. Olhem só que fantástico. A palavra “triz” vem do grego trikhós, que significa “cabelo”. Logo, perder (ou salvar) algo por um triz é o mesmo que perder (ou salvar) algo por um fio de cabelo, por alguma coisa mínima, muito pequena.
Mais uma: “emprenhar pelos ouvidos”. Essa é hilária. Provém da teoria de que a Virgem Maria foi fecundada pelo Espírito Santo, por intermédio de um raio luminoso que lhe passou pela orelha esquerda. E como era difícil para as pessoas acreditarem nesta história, ficou como sinônimo de “deixar-se levar por intrigas, fofocas, por informações orais sem comprovação”.
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Quem entre vocês não disse alguma vez: “ih, fulano foi para as cucuias”, significando que o tal fulano”bateu as botas”, “dançou”, “cantou para subir”, “esticou o pernil”, “bateu a caçuleta”, “foi comer capim pela raiz”? Várias vezes, não é? Sabe a razão dessas cucuias como sinônimo de morte? Do bairro chamado Cacuia, na ilha do Governador, cidade do Rio de Janeiro, onde está um cemitério, exatamente o Cemitério da Cacuia. Com o uso corrente, acabou virando a corruptela “cucuia” ou “cucuias”
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Aliás, sobre corruptelas o Nelson dá um show de bola e esclarece sobre o montão de expressões modificadas ao longo dos tempos, em muitos casos virando algo sem sentido, mas que as pessoas aceitam e passam adiante. Querem exemplos? “Batatinha quando nasce se esparrama pelo chão”. O correto é “batatinha quando nasce espalha rama pelo chão”. “Cuspido e escarrado” vem de “esculpido em Carrara”, província italiana da região da Toscana, grande produtora de mármores e onde se trabalha esta pedra de forma magnífica. “Enfiar o pé na jaca” provém de “enfiar o pé no jacá”, uma espécie de cesto feito de cipó. “Estar com bicho-carpinteiro” tem duas explicações. A mais conhecida, e que é registrada no livro do Nelson, é pela corruptela de “estar com bicho pelo corpo inteiro”, ou seja, estar inquieto. Mas há versões que garantem que esta expressão vem de um dos nomes pelo qual o escaravelho é conhecido, exatamente como “bicho-carpinteiro” (inclusive está dicionarizado), pois ele está sempre roendo madeira. Por esta vertente, “estar com bicho-carpinteiro” seria o mesmo que parecer estar sendo roído por dentro, por escaravelhos, por bichos-carpinteiros.
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No livro do amigo Nelson estão várias expressões criadas por mim, que eu usava numa peça de Teatro que encenamos juntos há alguns anos. Era uma cena em que eu falava para uma atriz “volta pra mim, vamos fazer nheco-nheco!” E ela perguntava: “O que é nheco-nheco?” e, no original, eu dizia algo como “fazer aquilo”. Num dia de ensaio, eu mandei um “gratinar o canelone”, que é como eu falo às vezes me referindo a fazer amor, fazer sexo. O diretor gostou e me incentivou a falar mais destas bobagens. E aí eu despejei meu repertório inteiro de gírias para nheco-nheco. Empolgado, eu inventei várias, a cada dia eu chegava com uma diferente no espetáculo. Olhem só as que eu criei: levar a tora pra serrar, afogar a cobra caolha, pingar iogurte no mexilhão, gratinar o canelone, fazer um cachorro quente sem pão, botar o siri na toca, temperar o chouriço, lixar a linguiça, envernizar o cabeçudo, rechear o pastel de pelo, martelar o bife. E além destas, eu dizia outras que ouvi em minhas viagens, escutando gírias salientes aqui e ali, como por exemplo: descabelar o palhaço, escovar uma tripa, dar um tapa na coelha, botar o Jabaquara em campo, repartir a peruca no meio, amassar o capô do fusca, destroncar o pescoço da girafa, botar a baratinha no espeto, botar a perereca para tomar leite de canudinho e vai por aí a fora.
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O Nelson adorava ouvir estas bobagens que eu dizia e, para meu orgulho e alegria, acabou dicionarizando tudo isso em seu maravilhoso livro. Fico imaginando alguém, daqui a não sei quantas gerações futuras, pegando o livro do meu amigo e chamando a namorada para “botar o siri na toca”... De onde quer que eu esteja, estarei rindo à socapa, com a minha melhor cara de pau.
Amigos, não deixem de ler “Conversando é que a gente se entende”, de Nelson Cunha Mello, Editora Leya, por R$ 48,86 no site da Livraria da Travessa. É sopa no mel, vai que é mole.

M.S.
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Na TV Antigas Ternuras, você vê o Nelson Cunha Mello sendo entrevistado no Programa do Jô, falando sobre as expressões de seu livro.

quarta-feira, outubro 21, 2009

Maria Solteirona


Numa noite dessas, tive um sonho enlouquecido. Bem, até aí nada de novo. Meus sonhos são sempre enlouquecidos. Eu nunca usei droga nenhuma e costumo dizer que nem preciso. Com os sonhos que tenho, parece que eu misturo LSD com Nescau e tomo um copo cheio na hora de dormir.
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No sonho, eu estava em alguma antiga cidade. Eu andava pelas ruas e ao cruzar com algumas pessoas elas me disseram: “Moço, cuidado com o fantasma da Maria Solteirona”. Eu achei aquilo muito curioso e perguntei que raio de fantasma era aquele e me explicaram que naquele lugar, houve uma mulher de nome Maria que morrera sem ter se casado. E como ela tinha cantado para subir virgem, sem ter colocado a baratinha no espeto, vagava à noite, com uma arma na mão, atrás de homens desacompanhados e quando os encontrava, os ameaçava com a garrucha. Disseram eles que teve muito homem que viu a Maria Solteirona, mas poucos sobreviveram para contar a história.
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Eu avisei a vocês que meus sonhos são coisa de maluco...
Bem, eu ouvi a história que me contaram e disse que não acreditava nisso, que estava com vontade de perambular pela rua porque queria chupar manga. E continuei a caminhada.
Daí que eu fiquei sozinho no lugar, ouvindo aquele zunido de vento nas árvores. Foi quando eu vi uma mulher vestida de noiva, com grinalda e tudo, com uma baita espingarda na mão. Ela era branquíssima, parecia que tinha talco no rosto. Nisso, o vento parou. Com o susto, cheguei a cair para trás. A aparição me apontou a arma e disse, com uma voz de filme do Vincent Price: “Você não acredita em mim, não? Pois vai ter que casar comigo ou vai morrer...”
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Eu me lembro da nítida sensação de aperto no peito e na garganta. Eu queria falar, tinha na mente a frase: “Espera... Calma... Vamos conversar...” Mas não saía nada! E aquela mulher branca, toda de branco se aproximando, dizendo que eu ia morrer.
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Foi quando minha namorada me acordou, perguntando porque eu estava gemendo e me debatendo. Meu pijama estava empapuçadão, meu coração batia no ritmo da seção de tamborins do Salgueiro. Caraco... Que mal estar!
Contei para ela o sonho que tive, rimos juntos e voltamos a dormir. Ela, bem mais rápido. Eu fiquei com receio de voltar para aquele pesadelo.
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A sensação de que eu estava vivenciando aquela história foi tão grande que depois procurei saber o que significa sonhar com fantasma. Há quem diga que são más notícias e há quem assegure que é sorte durante três dias.

Fiquei sabendo que noiva fantasma é coisa antiga, que existem muitas histórias, muitas lendas sobre isso, cada cidade tem a sua. Talvez pelo fato de vestirem branco com tecido transparente, talvez pela consequência social de uma mulher ser largada no altar... Aí já comecei a refletir sobre o assunto. Imaginei a pressão de uma sociedade machista e patriarcalista sobre a mulher para que ela exercesse sua função reprodutora que garantisse a perpetuação da família. E se ela era abandonada perto de deixar o celibato - uma anomalia que rotula a mulher como “solteirona” e antigamente a deixava estigmatizada por toda a vida, tendo que zelar pelo seu bom nome e sua virtude - aquele fato se transformaria numa carga excessivamente pesada que só poderia ser aliviada pela morte. E ela seria obrigatoriamente enterrada com o vestido de noiva (hábito que vem desde o Século XVII), acabando por se transformar um assombração.
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O assunto já estava ficando para lá de interessante. Resolvi pesquisar para saber se existiu mesmo alguma “Maria Solteirona”. Entrei na internet e... achei um monte de história de fantasmas de noivas e solteiras.
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Encontrei a lenda de “Ale Coelhinha”, uma mulher loura, solteira, razoavelmente bonita, embora dentuça, e que gostava de cair na noite, passando o rodo na rapaziada. Parecia que ela tinha calor na bacurinha e dava mais que chuchu na cerca. O comportamento liberal da moça provocou a inveja de uma vizinha solteirona que se incomodava com o fato da Coelhinha sair todas as noites caçando algum homem que quisesse afogar a cobra caolha nela. A rancorosa escreveu uma carta anônima, como se fosse de um dos rapazes que passaram pela cama da Ale, dizendo que tinha transmitido AIDS para ela. Desesperada, a moça foi fazer o exame. Quando saiu o resultado, ela nem quis abrir para ver. Acreditando que estava mesmo com a doença, foi para casa, colocou o envelope debaixo do travesseiro, tomou veneno e se matou. A invejosa, quando soube, deu boas gargalhadas. Mas quando foi dormir, sonhou que a loura lhe aparecia, fazendo acusações e prometendo que continuaria em espírito frequentando os mesmos lugares onde pegava os rapazes.
E muita gente viu suas aparições nas boates...
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Na Paraíba, em João Pessoa, no bairro de Engenho Velho, tem uma lenda que fala de Branca Dias, uma bela moça, noiva de um bom rapaz, que recebeu propostas indecorosas de um padre taradão, que queria botar a tora para serrar com ela. Como ela se recusasse, ele a denunciou à Inquisição e ela virou picanha assada nas fogueiras do Vaticano Grill. A partir daquele momento, muita gente passou a ver o fantasma da moça vagando pelas ruas do lugar.
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Em Minas Gerais, terra mater de todas as lendas urbanas que envolvem fantasmas, tem a da noiva de Congonhas que foi abandonada pelo noivo que resolveu virar padre. Em total desespero, ela se matou, cortando os pulsos, no próprio seminário (onde hoje está a Escola Municipal Fortunata de Freitas Junqueira) e a partir de então, ela vive assombrando os alunos, ora nos corredores, ora no banheiro feminino (ainda bem. Já pensou um moleque com o passarinho de fora, urinando, e dá de cara com a noiva fantasma? Na hora o pinto dele murcha e vira uma verruga!).
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Em Faxinal, no Paraná, certa vez uma família estava andando pela estrada a noite quando a criança que estava com eles viu uma moça de branco, sentada numa pedra, fazendo crochê. Ela disse para a mãe: “Olha que moça bonita!” A mãe olhou na direção que ela apontara e não viu nada. A mulher ficou intrigada e foi pesquisar para saber se havia alguma história esquisita acontecida por ali. Soube, então, que um noivo matou a noiva, pouco antes de se casar, e jogou o corpo exatamente naquele lugar.
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A história mais próxima da minha “Maria Solteirona” é a da “Noivinha fantasma do Cemitério da Água Verde”, em Curitiba. Diz-se por lá que uma noiva foi abandonada pelo noivo e acabou morrendo de desgosto. Então passou a vagar como alma penada pelo lugar, abordando homens desacompanhados que passam por ali, procurando um outro noivo. Ai que mêda!
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Vejam só que coisa... Eu tenho um pesadelo com noiva fantasma (que não sei como se instalou no meu subconsciente) e acabo descobrindo um assunto interessantíssimo para post.
E você, já viu alguma noiva fantasma?
M.S.

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Na Rádio Antigas Ternuras, você ouve o tango “Por una cabeza”, orquestrado por Astor Piazzola para o filme “Perfume de Mulher”.

quarta-feira, outubro 14, 2009

"Sob a luz bruxuleante de uma vela..."


Na Hora H, na hora da verdade, a gente corre por fora, abraçando causas, a ferro e fogo, acenando com possibilidades. Isso em grande estilo. Juro de pés juntos, sem meias-verdades, a olhos vistos. Não quero deixar dúvidas no ar, mas sob a luz bruxuleante de uma vela, fazendo um exame de consciência, digo que essa confusão é página virada. É hora de renovar as esperanças, de mostrar o nosso poder de fogo, de entrar para rachar. Sem dormir no ponto.
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Este texto enlouquecido aí de cima é um largo exemplo de chavões, clichês, lugares-comuns, frases feitas. A maioria dos bons escritores foge dos clichês como o diabo foge da cruz. Aliás, esta expressão é um baita dum chavão.
Diz o dicionário que clichê ou chavão são expressões desgastadas pelo uso constante, modismos que empobrecem o discurso falado ou escrito. E o pior é que essa praga se infiltra no vocabulário nosso de cada dia e é quase impossível não proferir um ou outro clichê. Especialmente quando estamos naquela conversinha besta, sem compromisso. Quem aí não entrou num elevador com o vizinho e para quebrar o silêncio não disse: “Está um calor de matar!”, “vem chuva aí”, “dia abafado, não é?”
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Porém o chavão cotidiano é um pouco mais palatável que o escrito, ou o dito nos meios de comunicação. Estatisticamente, dizem os estudiosos que o vocabulário médio das pessoas está oscilando pelas 150 palavras, e que entre os mais jovens, não passa de cem. Talvez seja verdade. Nunca se ofereceu tanta informação, tantos meios de comunicação e mesmo assim vivemos tempos em que se lê muito pouco, vai entender.
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E como não há o hábito de expandir o conhecimento pela leitura variada (jornais, livros, revistas de informação), muita gente apela para os velhos clichês na hora de falar e/ou escrever. As pessoas tem preguiça de ler. Tem preguiça de procurar um estilo elegante de escrever e-Mails, MSN, Orkut, twitter...
O tempo das pessoas está cada vez mais exíguo. Faz-se muitas coisas ao mesmo tempo, a comunicação tem que ser rápida, evitam palavras com mais de duas sílabas. A tendência é reduzir tudo para um dissílabo, no máximo, estourando, um trissílabo. Pois é. No nosso patropi, as pessoas querem ficar sussas, com tudo belê, então o negócio é no pá-pum. Falar, escrever “país tropical”, “sossegadas” ou “beleza”, toma tempo, e tempo ninguém tem de sobra.
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Atualmente, para a minha tristeza, a minha classe profissional, a dos jornalistas, é a que mais usa clichês, chavões. Eu leio os artigos nos jornais, ouço os telejornais e me pergunto para onde teriam ido a elegância vocabular dos bambas do passado, como Nelson Rodrigues, Castelinho, Rubem Braga, Joel Silveira, Drummond, João Saldanha...
Aliás, o jornalismo esportivo é o principal repetidor de chavões. Chega a dar raiva ver tanta pobreza vocabular nos coleguinhas. Antigamente, locutores diziam que um time estava atacando, avançando, subindo ao ataque, penetrando, agredindo, arremetendo, invadindo o campo adversário... Hoje só dizem: “chegando”. E só. É “chegar” para tudo, qualquer coisa que um jogador faça é “chegar”. E as palavras “vencer” e “vitória” que estão entrando em extinção? Hoje, um time não quer vencer, ganhar, alcançar a vitória. Só querem o “resultado”. Mas, com mil tubarões, o que vem a ser “resultado”?
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Às vezes tenho a impressão de que ninguém quer ser original em nada, que o mundo caminha para a padronização total e global de tudo, de roupas, de penteados, hábitos, modos de falar... Noutro dia, eu estava num shopping, esperando a sessão de cinema começar, comecei a prestar atenção nas pessoas que passavam por mim. A maioria se vestia igual, com penteados muito parecidos, todas tatuadas, quase todas com percings e rigorosamente todas falando do mesmo jeito.
Aquilo me lembrou uma linha de produção!
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Sei que estou malhando em ferro frio, fazendo tempestade em copo d’água, usando mão-de-ferro, buscando uma tábua de salvação, querendo sacudir a poeira da língua falada e escrita. Bem, trocando em miúdos, sem golpe baixo, é o que eu queria dizer. Será que vem chumbo grosso por aí?
M.S.

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Na TV Antigas Ternuras, você vê um vídeo de 56 segundos que poderíamos intitular, usando uma frase feita, como: “a necessidade faz o sapo pular”.

quarta-feira, outubro 07, 2009

Eu me recordo


Sempre que me perguntam qual a minha lista de melhores filmes que eu vi na vida não deixo de incluir no topo da relação uma obra cinematográfica que me é particularmente querida: “Amarcord”.
Tem um outro filme que é minha paixão particular: “Em algum lugar do passado”, cuja trilha, inclusive, é a minha música favorita de todas que existem. Mas eu não relaciono este em listas de melhores filmes. Ele tem valor sentimental para mim. Esteticamente, bem sei que ele não é nada de especial, embora não seja, definitivamente, um filme ruim.
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Mas “Amarcord” tem, para mim, valor sentimental e é uma obra maravilhosa esteticamente, cinematograficamente e outros “mentes”. É, ao meu ver, o grande filme de Fellini, que só filmou coisa boa. No dialeto da região italiana em que ele nasceu (na cidade de Rimini), Amarcord significa “Eu me recordo”. Com o filme, ele relembra, com uma saudade gostosa, de sua infância/adolescência, dos personagens que foram parte de sua vida, mesmo naqueles tempos difíceis do fascismo italiano.
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Eu já assisti a este filme 16 vezes e volta e meia pego o DVD e me deixo levar por aquelas lembranças fellinianas. Quem não o viu, não sabe o que está perdendo.
Lembro que quando minha mãe o assistiu, nos anos 70, quando ele foi produzido, chegou em casa e disse que tinha visto um filme que a fizera lembrar de mim. Isso porque aparece um garoto, que segundo ela, fez gracinhas que eu devia fazer na escola. “Êpa!” – protestei eu, indignado. “Eu sou muito comportado, não faço gracinhas nem travessuras no colégio”. Eu disse isso com a maior cara de pau, sem nem ficar vermelho. Lembro que minha mãe olhou para mim com uma cara que dizia: “arrã... sei... Quem não te conhece é que te compra.”
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Ela não me disse qual era o tal garoto (aparecem vários). Nem precisou. Quando vi o filme, soube direitinho qual era. E digo mais: se eu tivesse visto as cenas quando tinha aquela idade, provavelmente faria o mesmo ...Bwa-ha-ha-ha-ha-ha... (Essa é minha risada satânica...)

Ah, Fellini... A gente sabe que uma pessoa é gênio quando consegue nos falar diretamente ao coração e mente, mesmo sendo de época, cidade, país diferentes...
Essa cena do filme que está aí em cima, por exemplo. Olha, tinha dia que o almoço lá de casa era bem parecido, com minha mãe ameaçando um dia sumir no mundo, avisando aos berros que ia dar uma coça com fio de ferro no meu irmão se ele voltasse a pegar minha máscara de mergulho para tomar banho na caixa d’água de casa dizendo que era o “Príncipe Submarino”...
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Soube que o Arnaldo Jabor voltou a filmar e quis justamente fazer uma espécie de “Amarcord” de sua geração, o seu “Eu me recordo”. Pois é. Acredito que todo mundo tenha o seu “Amarcord”. Se pudesse fazer um filme, com certeza faria o meu “Amarcord”. Como ninguém me dá grana para filmar o meu filme de recordações, escrevo num blog bem na linha “Amarcord”, e é o que tenho procurado fazer por aqui já há quatro anos.
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Pois vocês sabem do que “eu me recordo”?
Eu me recordo de minha mãe me chamando para tomar o meu prato de mingau feito com maizena e chocolate em pó Bhering e depois eu discutia com meus irmãos para saber quem ia raspar a panela. O mesmo acontecia quando tinha angu... Eu me recordo de pedir para brincar na chuva e insistir muito para minha mãe deixar e quando ela concordava eu fazia a festa até ela me chamar para tomar banho, passar álcool na cabeça e tomar uma colherada de Rhum Creosotado ou vinho moscatel para não me constipar...

Eu me recordo quando os telefones eram pretos, as geladeiras e fogões eram brancos, as casas de minha rua eram “simples, com cadeiras na calçada e na fachada escrito em cima que era um lar”... Eu me recordo de tomar hidrolitol; de, no botequim, dividir um grapette e um litro de água mineral com gás com meus amigos, pois não tínhamos dinheiro para comprar um refrigerante para cada um... Eu me recordo de pegar vagalume e esfregá-lo na camisa para ficar brilhando, de capturar libélulas para amarrar uma linha fina no rabo dela, soltá-la e ficar controlando feito pipa no ar... Eu me recordo de deixar a janela do quarto aberta para sentir o perfume de “dama da noite” que exalava do jardim, de olhar pra lua e desenhar a figura de São Jorge nela com a ponta do dedo... Eu me recordo de chegar feliz no colégio para ver meus amigos, sair com eles para jogar totó, trocar gibi e livrinhos de bolso; de torcer para o professor mandar a Therezinha apagar o quadro só para ver o fundo das calcinhas dela quando levantava o braço... Eu me recordo de ficar sentado na beira do campo, mordiscando um talo de capim, esperando o sol baixar para começar a jogar futebol, de ficar triste em casa quando chovia no final de semana, impedindo a sagrada pelada de sábado e domingo...

Eu me recordo de ir ao parquinho ver as lutas com lutadores do programa Telecatch Montilla, de vaiar o Mongol e o Verdugo, e aplaudir o Demônio Cubano e o Leopardo... Eu me recordo de ficar torcendo para começar a ventar e para isso eu cantava a musiquinha: “vem, vento, caxinguelê, cachorro do mato quer me morder” e quando dava para colocar a pipa no alto, desafiar os outros cantando: “Tá com medo, tabaréu, sua linha é de papel”... Eu me recordo de minha mãe tomar susto toda vez que entrava no meu quarto e dava de cara com um mega pôster na parede do Fio Maravilha com a camisa do Mengão; de excursionar com o time em que eu jogava, o Sociedade Esportiva Codajás, e fazer cantoria no ônibus, especialmente entoando o hino do clube, cujo refrão era "ê calunga, esse time não pega macumba, calunga..."

Eu me recordo de juntar dinheiro da mesada, passar na Ultralar e comprar um compacto simples do Bread ou da Gladys Night and the Pips ou do James Taylor e correr para a vitrola da marca ABC A Voz de Ouro e botar o disco para tocar até quase furar... Eu me recordo de ir ao cinema nos domingos, voltar para casa, reunir os amigos da rua e contar o filme todo, inclusive representando cada personagem, de economizar na passagem de ônibus para comprar um sorvete daquelas máquinas com vidros de xarope colorido... Eu me recordo de brincar, de rir, de chorar...
Ah, como eu me recordo de ter sido uma criança feliz!
M.S.

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Eu quero agradecer de coração à amiga Samara que me deu um selo The Best 2009 (mas não tenho conseguido entrar no blog dela para linká-lo) e ao amigo Marcos Dhotta que também me ofereceu o selo "Este blog tem e faz História" e pediu que eu o repassasse para três blogueiros que escrevessem textos de recordações. Bem, atendendo ao pedido do Marcos, repasso este belo selo que aí está para o blog Playground dos Dinossauros, em que também escrevo, para o Morcegos e o Transmimentos de Pensações.


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Na TV Antigas Ternuras, você vê, lá em cima, uma das muitas cenas hilariantes do filme “Amarcord”, de Fellini. E aqui embaixo, um lindo clip com a música “Rio Antigo”, de Nonato Buzar e Chico Anísio. Eu não sou do tempo de quase nada que a música fala, mas ela tem o exato clima que eu quero passar neste post. Eu também quero muita coisa que não existe mais no Rio Antigo ou nas cidades do Antigo Brasil, mas que eu sei que era e é muito bom.