sexta-feira, junho 18, 2010

Vendinhas, biroscas e supermercados


Noutro dia, uma colega de trabalho me disse que a filha dela nunca tinha visto uma galinha viva, que a menina achava que as galinhas eram fabricadas no supermercado. Certa vez, no colégio dela, houve um passeio para visita a um pequeno sítio, não muito distante do centro urbano. Quando as crianças viram um porco, reagiram como se estivessem vendo um dinossauro. E quando a mãe disse que daquele bicho esquisito vinha a lingüiça e a salsicha que ela via no supermercado, a fofinha nunca mais quis comer cachorro-quente.
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(Para melhor curtir este post, que tal clicar na setinha abaixo e ouvir, enquanto lê, mais uma seleção musical que a nossa Rádio Antigas Ternuras – a Rádio que toca no seu coração – preparou para você?)

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É curioso ver como esta geração eminentemente urbana, criada no asfalto, na calçada, quando não brincando em estacionamento de condomínio, tem uma estreita e quase absoluta relação com grandes supermercados e shoping-centers quando se trata de tomar contato com produtos comercializáveis.

No máximo, sabem que existe a feira-livre, onde se pode comprar coisas em estabelecimentos mais ou menos improvisados. Creio que só as crianças de subúrbio ou das favelas ainda conhecem pequenos estabelecimentos comerciais, como as vendinhas. Mesmo as quitandas de hoje em dia mais parecem versões reduzidas das grandes lojas, onde, por exemplo, se compra grãos já ensacados em plástico. Imagino que, aqui na zona sul do Rio de Janeiro, deva ter muito jovenzinho que nunca viu um armazém com sacos de feijão, arroz, milho para se vender a granel, pegando os produtos com uma espécie de caneca grande, depositando os grãos dentro de um saco de papel marrom e se colocando para pesar em balanças de peso de ferro.
Bem, eu sou desse tempo. Do tempo das vendinhas, das biroscas, dos armazéns e quitandas. E é claro, peguei o início da disseminação de cadeias de enormes supermercados que gradativamente foram matando com o pequeno varejo.
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Não sei se já contei aqui (minha memória já não é lá estas coisas... sou um senhor de idade, vocês sabem...), mas quando era bem menino, em mil novecentos e não vem ao caso, se minha mãe ou meu pai se distraíssem quando iam no armazém do Seu Mário, eu enchia a mão de arroz e jogava no saco de feijão, mergulhava a mãozinha no granel de milho e tascava no saco de arroz e ia por aí. Até parecia que eu estava dando mostras que seria um químico quando crescesse, de tanta experiência de mistura que eu fazia. Quando percebiam, eu levava um esporro de meus pais e o Seu Mário com um baita sorriso amarelo dizia: “não foi nada, não tem importância...” Claro! Ele mandava um empregado “desmisturar” tudo! Não lembro o nome deste empregado, só me recordo que era um negro com a carapinha branquinha e uma paciência de chinês aposentado comigo e minhas travessuras.
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Ah, o cheiro das quitandas, dos armazéns de minha infância! Nem vou tentar descrever em palavras porque certamente eu não vou conseguir! Se você que está lendo mora ou morou no interior, sabe muito bem do que eu estou falando. E não é só o cheiro. Lembro do aspecto visual das quitandas, das vendinhas, das biroscas...

Era uma festa para meus olhos. Numa vendinha eu comprava quase tudo o que existia em meu universo de consumidor: biscoito Salgadinho Piraquê, vendido a varejo e embrulhado em papel marrom, chicle de bola Ping-Pong
(uma das últimas vezes em que estive com minha madrinha, ela me deu umas moedinhas para eu comprar um tutti-frutti Ping-Pong e quando eu fazia uma bola, ela assoviava, acompanhando a evolução do globo róseo, até que ele estourasse na minha cara... Ah, saudades de minha Dinda Irene!),

drops Dulcora (“embrulhados uma a um!”), pirolito Zorro, doce de leite em quadradinho, Crush,

Grapette, carretel de linha Corrente n. 10 para soltar pipa... E também uma coisinha e outra que minha mãe me encarregava de adquirir nas vendinhas do Seu Rafael, do Seu Oswaldo, do Zico...
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As grandes compras do mês, fazíamos nos supermercados, especialmente nas Casas da Banha (quem lembra desse famoso comercial?), na Casas Sendas ou no Disco. Dessas, só a Sendas ainda resiste, mas está com os dias contados. Li que vai tudo virar Pão de Açúcar.

Mercadão no meu tempo não tinha bateria de caixas. As compras eram pagas em cada setor. Depois de ter comprado tudo o que tinha na lista, era hora de entrar na fila para embrulhar as compras. Havia um ou mais funcionários encarregados disso. Obviamente, não existia estes sacos plásticos altamente poluidores.

Quando chegava a nossa vez de embrulhar o que tínhamos comprado, o homenzinho empilhava sobre uma folha de papel grosso um monte de produtos, encaixando tudo com enorme habilidade. Depois, fechava, enrolava habilmente com barbante de sisal, tendo o cuidado de fazer uma alça para transportarmos o pacotão em forma de maleta. Saíamos do supermercado e logo ficávamos com as mãos ardendo pelo contato com o barbante do embrulhão pesado.
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Fazer compras não era exatamente meu programa favorito. Entrar no ônibus carregando aquele peso era flórida... Eu gostava de ir nas biroscas, nas vendinhas. Ali, inclusive, era uma espécie de centro social da localidade. Sempre tinha uma mesa para uma rodada de buraco ou sueca, mesa de sinuca ou de futebol totó (pebolim), e era o local onde os adultos se reuniam para discutir futebol e falar sobre suas conquistas amorosas. Hoje sei que boa parte daquelas histórias de mulheres que davam para eles era mentira, estavam contando vantagem, mas como sempre gostei de uma boa história bem contada, isso não fazia a menor diferença.
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Botequim que se preze tem que ter um cachorro vadio por perto. E na birosca do Zico sempre ficava uma cadela a quem demos o nome de “Sua Mãe”. Isso só para a gente falar uns com os outros coisas assim: “Cadê Sua Mãe?” “Ah, Sua Mãe deve estar ali no lixão dando para um monte de cachorro...”
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Ah, as criaturas que frequentavam estas biroscas... Tinha um bebum, o Chico Barbudo, que quando a gente chamava ele de “Barbudo”, ele respondia sempre com uma voz melancólica, quase chorosa: “Barbudo é a mãe”. Chegava a ser engraçado vê-lo se achegando para os homens, pedindo para lhe pagarem uma cana e quando diziam: “O Zico! Bota uma aqui pro Barbudo!” Ele falava: “Olha, eu vou aceitar. Mas Barbudo é a mãe!” O detalhe é que o referido cidadão tinha uma baita barba mesmo!
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Os ambientes assépticos e impessoais como o são os atuais supermercados diferem bastante das vendinhas e quitandas de meu tempo, da minha antiga periferia. Não dá para ter conta na caderneta, comprar fiado no Carrefour, como a gente tinha na birosca do Seu Rafael. O calor ou frieza do atendimento também difere bastante, quando comparamos um com o outro.
Também era bem diferente ver a vida modorrenta passar, sentado na soleira de uma tendinha, observando crianças, porcos, galinhas, cachorros e bêbados zanzando pelas ruas. Isso esperando chegar gente suficiente para montar uma mesa de sueca ou de buraco. Êta vida mais ou menos...
M.S.
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Na Rádio Antigas Ternuras, você ouve “Doce de Coco”, de Jacob do Bandolim, na execução do Choro de Bolso.

9 comentários:

As Tertulías disse...

Que maravilha... Lembrei-me da birosca na Rua das Palmeiras, onde era meu colégio. Lá compravamos "Balinhas Boneca" na hora do nosso "recreio". Voce é fogo! Nos traz tantas memória lindas, gostosas!!!! Que maravilha!!!!!!

ARMANDO MAYNARD disse...

Caro Marco, eu também sou do tempo das “Venda”, “Bodega” e armazéns. Neles, encontrava-se quase tudo que se precisava para abastecer uma casa. Os armazéns ficavam sempre localizados em imóveis de esquina e se tornavam pontos de referência na região. Seus proprietários eram pessoas amigas e conhecidas de todo o bairro. Nessa época, era costume das famílias realizarem suas compras através das famosas ‘cadernetas’, que funcionavam como conta-corrente, aonde tudo que se ia comprando era anotado, para serem pagos no final do mês. Desse tempo, lembro-me de minhas compras: balas de café, saquinhos de fubá de milho, pão Todd e mariola. Os Armazéns eram pontos de encontros dos senhores da vizinhança, que depois do jantar se reuniam para bater-papo regado a uma boa ‘pinga’. Os Armazéns foram prenúncios dos Mercadinhos. Com o passar do tempo, os mercadinhos se transformaram em Super e Hiper-Mercados, sendo determinantes para o fim dos armazéns. Um abraço, Armando.

Francisco Sobreira disse...

Pois é, Marco, eu tenho pena das crianças de hoje, engaioladas em apês e cujo maior divertimento são os shoppings. Eu conheci bem essas bodegas (como chamávamos), principalmente porque nasci e me criei numa cidade do interior. Um grande abraço.

As Tertulías disse...

:-)) Errei... aqui está... olhe o que deixei na postagem anterior:

passei o link desta tua postagens para vários amigos. todos adoraram!!!! eu também - e olha que estava sob a impressao de ter deixado uma mensagem aqui... sobre balinhas boneca e as biroscas de Botafogo... na rua das Palmeiras... how very odd!

Luma Rosa disse...

Seu texto só não está perfeito, porque se esqueceu de um detalhe: "As cardenetas" :D eu gostava das verdinhas! E por causa do porco no início do post, lembrei das salsichas que vinham embaladas em plástico, que nao precisavam de geladeira. Lembra-se delas?
Quando eu morava no Rio, sempre ia no centro da cidade comprar coisas nos armazéns árabes! Alquimia de cheiro, que amo! Ah, misturar mantimentos? Fazia muito! Na casa da fazenda tinha no porão uma despensa, onde os alimentos ficavam em uma espécie de caixa de madeiras, encostadas uma a outra com uma tampa balaustre!! Hahahahaha achando graça do senhor de idade! Pode até ser, mas todos nós temos 'idade'. Mais uma força de expressão para nos explicar! Beijus,

dade amorim disse...

Aqui onde moro ainda existem alguns remanescentes das vendinhas, e sou até freguesa de uma há mais de quinze anos, tempo em que moro no bairro. A vantagem é que seu Manuel já é um amigo velho e manda entregar o que peço por telefone.
Ah, adorei o choro. Valeu, Marco.

Beijo pra você.

Sylvia Araujo disse...

Ah, que delícia de texto com cheiro e gosto de infância...
É tão triste perceber que essas sinestesias causadas pelas vendinhas estão em extinção. Falta prazer puro e simples na vida das crianças hoje. E pra nós, infelizmente, tudo isso é só memória - ainda que gravada no coração.

Beijo, Marco. Bom te ler.

Claudinha ੴ disse...

Marco,

esta foto do Ping Pong me deixou com a boca cheia d'água, juro que senti o gosto. Que saudade! Eu comprava na venda do Mozart (falávamos Mozár) e na venda de seu Ramiro (hehehe, lá eu aprontava tantas!) Ai que vontade tomar meu grapete sentada no balcão do boteco de D Violeta, com minha mãe grávida voltando do Grupo escolar... Nossas crianças de hoje nem imaginam a magia que tinham os cheiros e novidades destes lugares.
Eu tenho andado meio acabrunhada e cheia de saudosismos. Estou igual a mulher grávida, com desejo daqueles chiclets em forma de bola que a gente pegava nestas vendas, ao colocar a moeda. Morro de vontade de achar um destes. Veja só!
Mais um post que me devolveu aromas e deliciosas ternuras de minha infância...
Um beijo! Obrigada!

Veronica Arteira disse...

Oi, Marco, adorei cada letrinha, visualizei as cenas, voltei no tempo, na "vida mais ou menos" como você coloca. Como eu morava no interior, apenas as vendas, ou armazéns, existiam. Era a venda do Zé da venda, o armazém do Chapa, o armazém do Seu Sílvio...Mercados maiores só conheci mesmo já na idade adulta. Escrevi sobre isso dia desses. Quando quiser dar uma lida, eis o link: http://palavrarteira.blogspot.com/2010/08/sacola-plastica-e-o-ovo-e-os-ovos.html
Hoje você me fez suspirar!!!
Esqueci de dizer que li sobre o post lá no REcomentários.Muito bom!
Abraços