segunda-feira, setembro 28, 2009

Ripa na Chulipa, Lúcifer!


Hoje, 28 de setembro, há exatos cem anos atrás, nascia, em New Heaven, Connecticut/USA, Alfred Gerald Caplin, que se tornou conhecido como Al Capp. Bem sei que a maioria dos meus 17 leitores estará se perguntando: “E nós com isso?”. Pois é. Para mim, é uma data importante. Al Capp foi o criador da história em quadrinhos “Ferdinando”, também conhecida como “A Família Buscapé”. E sabem por que é importante para mim? Eu comecei a aprender a ler nas tirinhas do Ferdinando no jornal O Globo. E depois, prossegui nos gibis dele, publicados pela Rio Gráfica (hoje, Editora Globo).
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Era a historieta favorita de meu pai. Lembro que ele chegava do trabalho já com o jornal debaixo do braço (na época, o Globo era vespertino, saía pouco antes das 18h). Ele tomava banho, jantava, botava o pijama e ia pra cama ler pacientemente o seu jornal, de cabo a rabo. Minha mãe ficava ao lado dele e adivinhem que se metia entre eles e ficava buzinando a paciência dos dois, perguntando tudo?
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Naquele tempo, a penúltima página do segundo caderno dO Globo era toda dedicada a tirinhas de quadrinhos: Fantasma, Tarzan, Nick Holmes, Mandrake, Pafúncio, Reizinho, Brucutu, Flash Gordon, Príncipe Valente...e Ferdinando! Meu velho dava boas risadas com a aventuras do pessoal de Brejo Seco, o vilarejo onde o moço vivia com sua mãe, Chulipa Buscapé, e seu pai, Lúcifer Buscapé, e mais muitos outros personagens maravilhosos, como a boazuda Dulçurosa Suíno, que vivia abraçada com um porco e cheia de moscas voando por cima, a Violeta, sempre perseguindo Ferdinando para casar, até que um dia conseguiu pegá-lo na corrida anual do Dia de Maria Cebola, o índio Gambá Solitário, Joe Cabeleira e vai por aí a fora.
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Como meu pai gostava, eu perguntava para ele do que ele estava rindo. E ele, com paciência de um relojoeiro chinês aposentado, me lia os balões e me dizia cada palavra escrita. Eu acabei decorando algumas palavras e sabendo todas as letras. Não demorou muito e eu já estava juntando uma letrinha na outra, perguntando o que não entendia.
Portanto, para mim, os quadrinhos do Ferdinando são ternuras para lá de antigas e muito queridas. Não posso deixar de homenagear quem me ajudou a despertar para a leitura.
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Al Capp era de família bem pobre, filho de imigrantes da Lituânia. E para piorar ainda mais a situação, quando o moleque tinha nove anos foi atropelado por um bonde e perdeu uma perna. Aquilo seria definitivamente marcante em sua vida.
Quando ele contava com 19 anos, descobriu a tira de quadrinhos Mutt e Jeff, de Bud Fischer. No que ele soube que o desenhista ganhava três mil dólares por semana com aquilo, resolveu tentar seguir seus passos e sair da merda em que ele e a família estavam atolados até o pescoço. Criou uma historieta, chamada “Coronel Gilfeather”, e a enviou para a agência Associated Press. Ele se deu bem, arranjou um emprego ganhando seus trocadinhos, mas ele queria bem mais.
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Seis meses depois, resolveu se mudar para New York e tentar a sorte. Por azar, ou melhor, por sorte, foi atropelado de novo. Não perdeu nenhum pedaço do corpo, e seu atropelador era ninguém menos do que Ham Fischer, criador dos quadrinhos Joe Sopapo. Fischer saiu do carro para ajudar Capp a catar seus papéis espalhados pelo chão e quando viu que eram desenhos acabou contratando-o como assistente. Ele ficou algum tempo com Fischer, mas ele queria bem mais do que ser um mero auxiliar. Criou uma historieta chamada “Li’l Abner”, onde um rapagão caipira vivia aventuras no interiorzão americano. Mandou os quadrinhos para o King Features Syndicate, que gostou, mas pediu que ele transferisse o personagem da roça para a cidade grande, com o que Capp não concordou. Ele tentou outro sindicato, até conseguir, em 1934 (há exatos 75 anos atrás), um contrato com a United Features. E estourou tanto nos EUA, como no mundo afora.
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Capp gostava de dar nomes absurdos para os seus personagens, a começar pelo próprio protagonista (“Li’l Abner” em inglês é “Pequeno Abner”, como chamavam o Ferdinando, um cara daquele tamanho, vejam só...). Era difícil até de traduzir. Tiveram que recriar em português toda a nomenclatura dos caipiras de Brejo Seco (Dogpatch, no original). Eu até creio que os tradutores fizeram um ótimo trabalho. Vejam só: Mammy Pansy Yokum virou “Chulipa Buscapé”; Lucifer “Pappy” Yokum era o “Lúcifer Buscapé”, Daisy Mae, virou “Violeta”, Moonbeam Mcswlne passou a ser a tal “Dulçurosa Suíno”, Lonesome Polecat e Hairless Joe, eram “Gambá Solitário e Joe Cabeleira”.
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Ferdinando herdou a sua força descomunal de sua mãe, Chulipa, e a ingenuidade de seu pai, Lúcifer, que era um moleirão covarde, de vez em quando tomando uns catiripapos da esposa. Aliás, só devia ter “ripa na Chulipa” quando o velho Buscapé passava o rodo na velha. Já até imagino ela gritando naquela hora do “vamuvê”: “Vem, Lúcifer! Mete fumo que o cachimbo está aceso!”.
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O grande barato nas histórias da Família Buscapé era a crítica que o Capp fazia do modo norte-americano de vida, da sanha destruidora do sistema capitalista, que devorava os excluídos, e até debochava com muito talento do macarthismo, a doutrina de caça às bruxas que perseguiu tanta gente sob a acusação de práticas comunistas. Brejo Seco era uma representação da América e eu diria até de vários lugares do planeta. O leitor ria daquelas aventuras sem talvez perceber que estava rindo de si mesmo.
Por sua capacidade de fazer rir criticamente, Capp recebeu elogios de ninguém menos que John Steibeck, autor de “A leste do Éden”. Steinbeck inclusive recomendou Capp para o Prêmio Nobel de 1953. Disse ele: “Para mim, só Cervantes e Rabelais souberam criticar tão causticamente e essa crítica ser aceita e divertir a tantos. Ele é o melhor escritor do mundo”.
Li’l Abner já foi desenho animado, filme com Buster Keaton (1940) e com Peter Palmer e Julie Newmar (a estonteante Mulher-Gato do seriado Batman) em início de carreira (1959). Foi musical na Broadway mais de uma vez e eu confesso que adoraria participar atuando em uma montagem brasileira da Família Buscapé.
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Muita gente diz que a invenção mais genial de Al Capp foram os Shmoos. Eram criaturinhas divertidas que se transformavam em qualquer alimento que a pessoa desejasse. Bastava olhar para eles com fome que eles alegremente viravam frango assado ou pernil. Davam ovos, leite e manteiga de graça.

Os shmoos se reproduziam facilmente e seriam capazes de acabar com a fome no mundo. Todavia, nas historietas, os capitalistas identificaram nos bichinhos os grandes inimigos do sistema e acabaram convencendo Ferdinando e os habitantes de Brejo Seco que eles deveriam morrer para que todo mundo voltasse a ser explorado como sempre aconteceu.
Essas historietas em pleno macarthismo fizeram muita gente ficar de olho atravessado para Al Capp.
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Ah... Saudades de ver meu pai lendo e gargalhando com as aventuras de Ferdinando... Por isso, aqui vai o meu muito obrigado a Al Capp. Ele morreu em 1979 (há exatos 30 anos), doente, entrevado em cadeira de rodas. Desde 1977 já não mais desenhava seus incríveis personagens que levaram um certo menino a começar a se interessar por leitura, e que posteriormente não parou mais, lendo tudo o que lhe cai nas mãos.
Deus te abençoe, Al Capp. Se ninguém lembrou de seu centenário de nascimento, este eterno menino não te esquece nunca.
M.S.

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Na TV Antigas Ternuras, você vê um engraçadíssimo desenho animado de Ferdinando intitulado “Dia de Maria Cebola” (Sadie Hawkins Day). Neste dia, criado por Ezekiah Hawkins, pai do “dragão” Sadie Hawkins, para desencalhar a filha tribufu, havia uma corrida em que os solteirões seriam perseguidos pelas encalhadas de Brejo Seco. Se uma das “beldades” conseguisse agarrar um solteiro, ele teria que se casar com ela. Era a grande chance de Violeta (Daisy Mae) pegar Ferdinando (Li’l Abner) de jeito. O animador deste desenho foi Dave Fleischer, o mesmo de Popeye. Isso pode ser percebido nas características de Chulipa...
(Se o filme der uma travada, mexam no botãozinho para adiantar e depois retroceder a imagem)

17 comentários:

Claudinha ੴ disse...

Olá Marco!

Que bela homenagem! Eu não peguei esta época, mas conheço a história de Ferdinando e sua família Buscapé. Você está perpetuando suas ternuras e sua maneira de escrever faz com elas se tornem nossas ternuras também.
Eu peguei um tempo de outros quadrinhos, Luísa, Brasinha, Brotoeja, Gasparzinho, Pimentinha, e tudo de Disney. Sou fã do Mancha Negra (mas estou mais pra Maga Patalógica que para Madame Mim).

Um beijo!

Anônimo disse...

Peço desculpas pq confundi a data, mas lembrei de vc sim, no dia 19/09 veja o link do arquivo do blog:
http://luluonthesky.blogspot.com/2009/09/dica-da-lulu-e-se-fosse-verdade.html

Jurava q era 19, vou corrigir.

Luma Rosa disse...

Marco, o sobrenome Caplin é de uma família de desenhista, de pessoas envolvidas com os cartoons, li sobre um roteirista de quadrinhos - Elliot Caplin, que talvez possa ser parente de Alfred Caplin; este suicidou por ter passado vexame quando foi expulso de uma associação de cartoon. Se estiver a fim de relembrar, no mercado livre tem gibis de "Ferdinando E Os Shmoos" para vender.
Boa semana! Beijus

Anônimo disse...

Muito lindo esse post!
Espero sinceramente que vc um dia realize o sonho de encenar a peça, sendo um de seus personagens geniais.
Taí uma coisa legal para se ter como objetivo, não?
bjus,Ro

tibéu disse...

Adorei vir até aqui, desculpe entrar sem pedir licênça, mas adorei e voltarei.

Moacy Cirne disse...

Cara,
o Ferdinando também era meu personagem favorito! E confesso minha paixão por Dulçurosa Suíno, e não pela Violeta. Para mim, aos 8 e 9 anos, Brejo Seco era tão real quanto Caicó e Jardim do Seridó. Amei a sua postagem. Ainda hoje tenho em alta conta a criação de Capp.
Um abraço.

Érica disse...

Depois do post "A lua em crescente", que eu li, li novamente e ainda levei como pauta numa dessas saídas, o post sobre os remédios tinha me chamado ainda mais a atenção. Agora esse, fantástico... Uma constante superação. Adorei o Ferdinando e saber mais sobre essas pequenas coisas tão interessantes. Se o Al Capp estivesse vivo, adoraria a grande e emocionante homenagem.
Beijos e até a próxima.

Dilberto L. Rosa disse...

Rapaz, mesmo não concordando em definitivo com seu gosto cinematográfico para adptações de HQ (da Marvel, o primeiro Hulk, X-Men 2 e Homem-de-Ferro somente me agradaram e Superman, o Retorno é uma ode cinematográfica ao mundo do super-herói e ao filme de 78... Mas meu primo Buscapé discorda... Rs), concordo que Ferdinando foi mesmo divisor de águas e é mesmo uma pena este belo centenário ter sido esquecido! Belíssimas lembranças, como sempre! Abração, meu caro pequeno leitor de jornal alheio!

Samara Angel disse...

oi meu querido Marco,acho que vc nao leu meu comentario do post passado,fiquei triste viu,pq te adoro ,como nao podia deixar de ser o THE BEST 2009 DO PAGINAS VIRADAS É SEU EM PRIMEIRÍSSIMO LUGAR COM MUITA HONRA E MUITO CARINHO,VC É MERECEDOR ,POIS SEU TRABALHO É MAGNIFICO,A GENTE SAI CHORANDO DE RIR E APRENDENDO COISAS DE TROCENTOS ANOS,RIS,TE ADORO SABIA,GRANDE ABRAÇO MIL BJSSSS,DE QUEM TE ADMIRA MUITO.
RADAS É SEU

Graça Lacerda disse...

Marco,
esse seu post está tudo de melhor!
Primeiro porque, como você já sabe, eu sou amarradésima nas antigas ternuras!!!
Al Capp com certeza deve estar te agradecendo lá de onde ele estiver pela linda homenagem e lembrança...
É um presente de Deus para nós, leitores seus que amamos todas essas reminiscências, o fato de vc conservar guardado na memória, nos registros e no coração toda essa bagunça deliciosa desses caipiras que embalaram nossa infância!!
Ferdinando e toda turma!) é sensacional, e reviver a atmosfera inocente daquela época através do vídeo vídeo foi pra mim emocionante.
Vi umas quatro ou cinco vezes, direto!!!
Lembrei tb de uma novela que resgatou o episódio da festa da Maria Cebola... é muito legal.
Sobre a riqueza das informações, a maioria novas para mim, só tenho a te agradecer.
Sonhas em montar a peça? Vai fundo nessa ideia que logo, logo ela está sendo realidade!!!
Bjs em teu coração.
(desta vez foi preciso editar meu comentário...rs e uma observaçãozinha: vai correndo pegar o teu selo com a Samara...)

Julio Cesar Corrêa disse...

Engraçado, já havia visto o trabalho do Al, mas nunca havia ouvido falar dele. Na verdade, nunca fui muito chegado em quadrinhos. Hj tenho outra visão desta arte. Percebo que ela não é tão infantil quanto eu pensava. Foi realmente uma bela homenagem.
abração

Tina disse...

Oi Marco!

Lembranças de infância bem distante eu li neste post. Lembranças perdidas, tempos idos. Lembranças apenas. Valeu (re)lembrar.

beijos querido, bom fim de semana.

syl disse...

oi meu amor,
estou declando do meu presente...
beijo no seu coração.
Syl, 12 anos

MARCOS DHOTTA disse...

Caríssimo Marco!! O Ferdinando esteve presente por toda minha infância... Que Família era aquela!!! E na época eu não conseguia entender a crítica velada em seu bojo. Abraços.

PS:Tem um sêlo do Caríssimas Catrevagens - Este Blog tem e faz História - para vc do meu Blog, pega lá... Repasse para 03 amigos cujos blogs se pareçam com os nossos.

itiro disse...

E a doce e saudosa Meire Pavão cantou a Família Buscapé na época da Jovem Guarda.
Ri demais com o clip do Fotos de Casamento!
Um grande abraço!

Claudinha ੴ disse...

Olá Marco!
Voltei para lhe contar que estou lendo o Humor Vermelho e adorei! Ontem o Léo Jaime me perguntou se estou gostando e nem preciso dizer o que respondi a ele,né? Já conheci o blog de duas colegas suas de livro e gostei muito também.
Beijo!

Luma Rosa disse...

Precisava de um contador de histórias lá no "Luz" :) Beijus