segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Conversa entre amigos


Eu cheguei diante da casa e vi o menino, sozinho, jogando bola de gude. Descalço, short e camiseta, ele manipulava os pequenos glóbulos de vidro com perícia, impulsionando uma e outra, ora com força, ora com suavidade.
- Olá.
Ele não pareceu se assustar com o meu cumprimento. Levantou os olhos e me viu. Gastou alguns instantes para responder, o que me levou a pensar que tinha me reconhecido.
-Oi.
- Quer jogar comigo?
Ao ouvir a pergunta, um certo brilho de cobiça faiscou naquele olho castanho de pestanas longas.
- À vera ou à brinca?
- Huum... Vamos começar à brinca. Estou destreinado, sabe? Depois a gente cai à vera.
- Tá. Zepe, triângulo ou búrica?
Eu lembrei que das três formas, búrica era a que ele mais gostava. Talvez porque demorasse mais.

No zepe, ele fazia o círculo no chão de terra batida com a tampa de lata de Toddy, onde guardava suas bolas de gude. Neste jogo, podia-se entrar no círculo e tecar as bolas de lá. Ganharia quem tirasse mais do zepe ou acertasse a bola do adversário.

No triângulo, se a bola de um dos jogadores caísse da linha pra dentro, o adversário ganhava. O jogo acabava com o fim das bolas no triângulo ou com um dos dois acertando a bolinha do outro.

Na búrica, faziam-se três pequenos buracos no chão, em fileira, com a distância de um passo largo entre eles. Daí, arredondava-se suas laterais com o calcanhar. Os contendores tinham que viajar pelas três búricas, ida e volta, e só aí conquistavam o direito de “matar” o outro.
- Marraio-firidô-sou-rei!
Nem me lembrei de dizer isso antes dele. Quem pedia isso ganhava o direito de jogar por último e seria o primeiro a jogar se acertasse a bolinha do outro naquela hora de decidir quem começava a partida. Joguei a minha bola de gude tentando fazer com que ela chegasse o mais perto da terceira búrica.
Claro. A bolinha dele chegou bem mais próximo. Ele começaria.

Jogou habilmente a sua bola dentro da primeira búrica e dali acertou a minha, mandando-a para bem longe. Eu percebi que ele riu. Não tão escancaradamente para parecer humilhação, nem tão imperceptivelmente para não deixar de saborear aquele momento de prazer.

- Você tem ido a cinema?
- Vou domingo agora. Está levando “Hércules contra Maciste”. Eu gosto de filme com deuses da Grécia.
- É, eu sei. Você não perde um desses filmes com personagens históricos.
Ele estava na iminência de chegar na terceira búrica. Com o meu comentário, ele parou o que estava fazendo e me olhou longamente. Percebi que ele estava tentando saber, silenciosamente, de onde eu poderia conhecer o seu gosto por filmes e por mitologia grega.
- Sou papa! Agora, tome cuidado!
Ao ter completado o percurso, agora ele tinha o direito de me matar. Tentei distraí-lo. Não queria que o jogo terminasse logo.
- Você vai daqui pro cinema pegando ônibus?
- Não. Minha mãe me dá o dinheiro da passagem, mas eu vou a pé e compro um sorvete.
Ele gostava do sorvete daquela máquina que tinha vidros com xaropes coloridos. Pedia sempre o de uva e ficava olhando a massa da guloseima descer lentamente para dentro da casquinha, enquanto o operador ia controlando o fluxo de xarope. Ao final da operação, lá estava a casquinha pronta, com a massa do sorvete em tom lilás, e o forte sabor de química que agrada a paladares pouco exigentes.
- Arrá! Sou papa também. Vem ni mim procê ver!
E ele veio. Mediu um palmo, posicionou a mão direita e disparou sua bolinha na direção da minha.
- Matei! Rá! Rá! Rá! Rá!...
Há quanto tempo eu não ouvia aquela gargalhada de menino que ainda não engrossou a voz.
- Tudo bem. Perdi. Agora vou ter que ir. Foi bom o jogo.
- Mas só uma? Vamos pra outra!
- Acho que não vai dar tempo... Quem sabe outro dia.

Nisso, ouvi uma voz gritando dentro da casa, chamando o menino para almoçar.
- Gostei de jogar contigo. Hoje a tarde vai ter jogo no campinho?
- Vai! Hoje tem pelada contra o time da turma do Valão. O senhor vai assistir?
Estranhei ele me chamar de “senhor”. Mas lembrei que ele sempre chamava os mais velhos assim. Fora ensinado pela mãe a sempre respeitar quem tinha mais idade.
- Tome. Fique com as minhas bolas de gude. Agora tenho que ir. Até logo.
- Até logo. Volta aí quando quiser...
Fui caminhando devagar, cheguei a ouvir a mãe do menino, que aparecera na janela, perguntando a ele:
- Marco, você está falando com quem?
- Com aquele moço que vai ali.
- Que moço? Não estou vendo ninguém... Tá maluco?
Não, mãe. O seu menino não está doido. Ele haverá de crescer e lhe dar muitas alegrias, como a senhora bem gosta de dizer.
Ainda escutando a voz dela, senti que estava acordando daquele sonho tão agradável...
M.S.
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Na Rádio Antigas Ternuras, você está ouvindo 14 Bis e “Bola de meia, bola de gude”. Tem música mais apropriada para este post?
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Festa do Oscar: dos cinco bons filmes, ganhou o menos bom deles. A Academia tem sempre uma surpresa...
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“Mengão eliminou o time dos bacalhosos”. Nem Drummond, Vinícius, Neruda poderiam escrever uma frase com tanta poesia como essa... Ahhhhhhhhhhh!
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Pessoal: estou tirando um restinho de férias que ficou faltando. Ficarei fora do ar por uns tempos. Até a volta!

31 comentários:

Anônimo disse...

E que sonho maravilhoso! Adorei esse texto cheio de reminiscências da infância. Eu, como manteiga derretida assumida e sem-vergonha, fiquei com um nó na garganta. Aproveita o restinho das férias e leva o saquinho com as bolinhas de gude :)

Ah, obrigada pela gentileza que deixou lá em casa.

Anônimo disse...

Poxa,MARCO. Que gostoso de ler isto.
Eu nunca joguei bolinha de gude,mas fiquei maravilhado com esta sua história.
Bom,descanse bem o restante das férias.
É sempre muito bom.
Abraço grande!!

Anônimo disse...

Marco:
Bela lembrança da infância e da brincadeira com as bolinhas. Há muito tempo não via os termos búrica, triângulo, etc. que você usou.
E me vi, menino, enfrentando os amigos à vera.

Lara disse...

Oi querido!
Primeiro, que sonho hein? Amo a forma como vc relata as coisas, quase podemos vivencia-las!
Quanto ao Oscar, não assisti... muito tarde para quem tem que estar no curso de madrugada. Não vi todos os filmes indicados, então vou me abster de opinar..
Quanto ao Futebol, bem, já fui sacaneada de todas as formas que vc pode imaginar. Enfim, cansei de Vasco x Flamengo, pra mim já deu!
beijos!

Claudinha ੴ disse...

Olá Marco!
Eu fiquei emocionada com seu post. Eu brincava de bolinha de gude com os meninos. Guardava minhas bolinhas numa espécie de embornal com laço de fita de cetim e sempre batia. Búrica. Aqui, onde moro agora, se chama fubeca. Mas a maneira com que relatou foi mágica. Tenho certeza que o menino só deu alegrias à sua mãe. um sonho destes , uma chance de voltar ao passado e se ver deve ser única. A música não poderia ser mais apropriada. O adulto balançou, o menino lhe deu a mão.É assim que tem que ser.
Boas férias, muito descanso e alegrias. Beijo.

Anônimo disse...

aproveita...e boa sorte..

Anônimo disse...

Delícia de sonho... tão bom tornar a ser criança, ao menos na terra onírica! Boas férias, querido amigo Marco, bom descanso e retorne breve, pois a saudade será grande.
Carinhos e beijos

Saramar disse...

Que coisa, Marco!
Que mania você tem de me emocionar!
Quase choro lendo esse final do lindo sonho. É maravilhoso!
Claro que não entendi nada do jogo porque, apesar de tê-lo assistido (de longe) milhares de vezes, às meninas não era dado tocar em bolinhas de gude, você sabe.
Eu invejava a beleza, a transparência, as cores cambiantes, mas nada de poder possuí-las. Isso era coisa de menino.

Bem que você poderia ampliar o testo, explicando a origem desses termos tão interessantes usados no jogo (ihhh... compliquei?).

Obrigada. Só aqui, reencontro minha infância.

beijos

Wescley J. Gama disse...

Oi, marco. gostei do que vi e li aqui...do teu perfil também...Machado de Assis...e o André Luiz é revelação recente pra mim. surpresa boa, como costumo dizer. Você conhece o livro o mundo acabou, do alberto villas?
é cheio de rememorações...

grande abraços

Anônimo disse...

Marco, muito legal o sonho que gerou uma crônica saudosa e saborosa. A criançada de hoje, nem daqui a um milhão de anos poderá sonhar assim. Se alguém disser "bola de gude" vão talvez pensar que seja algo comestível, acho.
Abrçaos.
http://napontadolapis.zip.net
http://dulcineia.blogspot.com

Roby disse...

Que texto mágico Marquinho!!
Lembrei-me da minha infância...lá no sul chamamos de "bolitas"
Mas eu não sabia jogar..rs
Eu fazia coleção das mais bonitas e coloridas..
Cada uma, tinha um nome como ex: "olho de boi". era difícil encontrá-la....enorme e parecia um olho de boi mesmo..
E eu tinha a dita cuja..heheh
Os meninos enlouqueciam me fazendo proposta de compra..rsr
*
*
Este teu texto pareceu cena de filme...LINDO DEMAIS!!!
*
BJUS AMIGO, CURTA BEM SEU RESTINHO DE FÉRIAS!!

Eärwen disse...

Simplesmente lindo! Me fez lembrar dos tempos que eu jogava....é sim! Jogava com meu irmão e uns outros...ficavam "fulos" quando eu ganhava (não era pra menos).
Emocionante e gratificante vir aqui e ler-te.
14 Bis.....que maravilha.
Ganhei eu um grande presente.
Boas e merecidas férias meu amigo, quando voltares vá ao Pérolas...que fez seu primeiro ano de vida.
Deixo-te pérolas incandescentes com o forte desejo que tenhas as merecidas férias.
Carinhosamente
Eärwen
27.02.07

Anônimo disse...

Marco,

Eu adorei essa conversa que retratou aqui...mesmo eu sendo menina, e nunca ter jogado bolinha de gude, me fez voltar a infância...e sabe, eu tinha uma amiga imaginária...hehehe
Aproveite bem as férias...
Beijos da sua personagem...hehehe

Julio Cesar Corrêa disse...

Joguei bola de gude e gostava de soltar pipas. Hj eu me sentiria ridículo fazendo isso.
gd ab

Chellot disse...

Quando pequenina gostava de jogar gude e na minha rua a garotada usava o triângulo, era muito divertido.
Tenha um bom descanso e divirta-se.

Beijos de liberdade.

Renata Livramento disse...

NOssa, q legal, fui lendo o texto achando que eura verdade...rs...
Valeu tb a aula de bolinha de gude, pois eu nunca joguei (meninas jogavam cinco marias, lembra?!)
E a música não podia ser mais perfeita pro post!
bjo

Anônimo disse...

Oi Marco, que bom conhecer seu blog! Cheguei até aqui pelo blog do Lino, adoro conhecer e fazer movos amigos, inclusive aqui, na blogosfera! Seu blog é mesmo uma antiga Ternura...maravilhoso, Parabéns!!!!
Lindo post...saudades dos tempos de criança...rsrsrs...
Ah e " Bola de meia, bola de gude", é tudo de bom!
Qdo puder, apareça, eu volto, com certeza!
Boas férias...
Crisssssssssss....

Luma Rosa disse...

Deu vontade de tomar esse sorvete. Com o Vento daqui ele iria derreter rapidinho!
Marco, quando a minha família se reune na fazenda ainda jogamos bola de gude. E lá é jogo para as damas e crianças enquanto os homens jogam pelada! As minhas primas são tão afinadas que quem olha de longe pensam que elas estão na capoeira! (rs*) Bom descanso! Beijus

Luma Rosa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Meu caro Marco,
Vou te roubar um frase que vc. usa qdo se trata de reminiscêscias: gosto muito dessas antigas ternuras.
Só que a de hoje tá um primor. Em tudo.
Parabéns, meu caro, parabéns"

Anônimo disse...

Puxa, o texto de hoje está demais! Eu tb brinquei de búrica, e entre a molecada da minha rua, tinha um que trazia bolinhas de aço e acabava com as nossas, de vidro.
Os filmes do Maciste e de outros heróis gregos me remeteram pro tempo que frequentava o cine Goiaz, perto do Largo de Pinheiros, década de 60...
Um bom fim de semana!

Escorpiana Explosiva disse...

Meu amigo eu embora seja uma mulher gostava muito de jogar esse jogo que vc acaba de descrever.

Na minha rua na cidade que eu morava era a unica garota que se juntava a jogar com os meninos.

Mas só quando meu pai de criação ia trabalhar em um lugar muito longe pois ele não gostava de deixar eu e meu irmão se juntar com os amigos para brincar para ele cada criança na sua casa ele sempre dizia isso pra nós.

Hoje ao ler isso me bateu uma saudae tão grande também gostavamos de soltar pipa embora a vizinhasa reclamasse nós nem dava ouvidos pois era muito legal.

Em pensar que hoje poucas gurizadas curtem essas 2 bricadeiras que eram tão legais,as vezes até compro bolita só pra jogar com meu afilhado e noto que ele se diverte.

Um abraço.

Ana Carla disse...

Puxa, Marco! Que jeito lindo de dizer "até já!"... Justo hoje que estou na contagem regressiva pra completar minha quarta década, isso me emociona. Vc consegue cada coisa... Beijão!

Anônimo disse...

Marco, passei pra desejar um bom fds e dizer que os comentários para votação já estão postados no link a seguir...
Abraços.

Theo G. Alves disse...

caramba! durante anos joguei bila (como chamamos as bolinhas de gude por aqui). jogava sempre a corruptela de búrica: era bura mesmo, porém com 5 buras, sendo prima, siga, terça, quarta e mata.

eu até que era bom nisso.

bela lembrança!!

grande abraço!

Janaina disse...

Que delícia de texto, Marco!
Amei.
Só pra implicar: Mengão levou surra do Madureira! Hahahahaha!

Anônimo disse...

Eu sempre gostei de jogar gude com os buraquinhos. só agora soube o nome do jogo, rs.
ninguém ganhava de mim, e se ganhassem levava surra, rsss.

brincadeira, mas sempre fui péssima perdedora.

te beijo

ps. não, não tinha música melhor.

Taís Morais

Luma Rosa disse...

Passando e deixando beijus

Vera F. disse...

Marco, bola de gude no sul como a Roby já falou chamávamos de bolita. Meu irmão era fera no jogo e tinha coleções delas, cada uma mais linda que a outra, tinha até de aço! Casualmente esse assunto fez parte das lembranças minhas e de meus irmãos num encontro familiar. Como é bom ter uma infância saudável!!!

Boas férias. Aproveite muito!

Bjos.

Francisco Sobreira disse...

Marcos,
De fato, sonhar com o tempo bom da infância é um sonho muito agradável. Como, de fato, não há "trilha musical" melhor para ilustrá-lo do que essa música. Pena que você tenha omitido o nome do compositor e do letrista (talvez sejam o mesmo, não?) E a foto é bastante sugestiva. Enfim, uma atraente postagem. Um abraço.

Anônimo disse...

Não cheguei a conclusão se vc gosta ou não do nefasto Ciro Gomes...pelo sim pelo não achei que vc gostaria de saber que agora existe um blog contra ele na internet...pequetito pero cumplidor... eu tenho muitos motivos pra não gostar desse elemento e comecei a fazer essa molecagem internética porque a arma que me resta é a palavra apenas... bem humorada porém contundente... se for o caso divulgue... obrigado, abraço
Ricardo Soares