sábado, janeiro 27, 2007

Espinhela caída


Noutro dia, eu estava assistindo à ótima minissérie “Amazônia”, quando ouvi a personagem da Betty Goffman dizer que precisava “rezar espinhela caída”.
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É impressionante como algumas palavrinhas têm o poder de nos arremessar numa espécie de “Túnel do Tempo” e a gente volta ao passado, recordando cenas inteiras, como se tivesse passando um filme diante dos olhos.
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Eu iria escrever a minha história com “espinhela caída”, mas aí lembrei que já tinha escrito e até publicado aqui, nos primórdios do blog. Resolvi rever o texto, dar uma mexidinha, inserir imagens e música e republicá-lo. Posso dizer, sem susto, que espinhela caída é uma de minhas antigas ternuras. Quem já padeceu desse “mal”, haverá de se lembrar...
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Há alguns dias, li nO Globo, na coluna do Joaquim Ferreira dos Santos, uma crônica sobre “espinhela caída”. Talvez você que esteja me lendo não saiba o que diabos vem a ser isso. O Joaquim lembrou bem que esta era uma “doença de suburbano”. Eu vou mais além: De morador da periferia, também. Mas atenção, muita calma nesta hora: não há nenhum tipo de preconceito no comentário Joaquim (que confessou ser nascido e criado na Vila da Penha, com muita honra) ou no meu. Espinhela caída dava (acho que não dá mais...) na criançada do subúrbio (onde morei por uns tempos) e do Grande Rio (onde me criei) por fazer parte daquela cultura. Como jogar bola de gude, soltar pipa, rodar pião, comer goiaba no pé, jogar futebol em campinho de várzea, brincar de pique-bandeira, carniça, garrafão, pular corda...Vocês entenderam, não é? Eu não consigo imaginar um morador de Ipanema, Copacabana, Flamengo e arredores indo numa rezadeira para rezar espinhela caída. Essa é uma cena que nunca vou ver no Leblon de “Páginas da Vida”.
Também não imagino ver nenhuma criança de lá jogando búrica em quintal de terra.
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Esclarecimento feito, passemos à espinhela. O que será, com mil tubarões, espinhela caída? Segundo minha mãe e minha tia, eu tinha isso. Na época, não sabia exatamente o que vinha a ser esse troço. Suspeitava que tinha a ver com o estado de magreza absoluta que as agitadas crianças do meu tempo viviam. A gente não tinha videogame, via pouco televisão, daí, estávamos sempre correndo, brincando, agitando. Acho que por isso o pastel e o cachorro-quente da cantina da escola não viravam gordura no nosso corpo. Queimávamos aquilo tudo em uma hora de pique-tá ou subindo e descendo a ladeira com carrinho de rolimã.
Mas, espinhela caída... Talvez tivesse a ver com o meu osso esterno que é um pouco profundo.
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Sei que, de tempos em tempos, a minha mãe ou a minha tia Avelina, que morava em Piedade e com quem eu cheguei a passar uns tempos, me olhavam com olhos críticos e diagnosticavam: “espinhela caída!” Daí, a minha tia falava:
- Marquinho, vai chamar a Dona Maria!

Era a rezadeira da vila em que morávamos, na Rua Padre Nóbrega, 494. A casa da minha tia era a 4, ou “IV”, já que os números eram escritos em romanos. A da D. Maria era a I. Eu adorava ser acometido pela tal espinhela caída. Justamente para ser rezado pela Dona Maria e ter que ir na casa dela para chama-la. Lá, morava a sua neta, Ângela, um de meus amores infantis. Eu tinha uns 7 anos. A Ângela, uns 13. Já tinha até peitinho. (Imagino a matrona em que ela deve ter se transformado...)
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Pois bem. Eu ia lá, chamava a D. Maria, via a minha paixonite, e voltava para casa. Logo em seguida, chegava aquela velha senhora, com um galhinho de arruda nas mãos. Eu ficava em pé, diante dela, ela começava a me rezar. Murmurava palavras que eu não conseguia distinguir, sempre me cruzando com a arruda.
- Vira de costas.
Eu obedecia. Ela fazia a mesma coisa que tinha feito antes, com um detalhe: ela sempre começava a bocejar durante o processo de reza. Acredite se quiser: eu sentia um formigamento de leve pelo corpo, durante aquele ritual. Uma sensação gostoooosa...
Depois de rezado, e, imagino, curado do ataque de espinhela caída, minha tia dava um dinheirinho para D. Maria, que se ia com passos rápidos, cuidar de seus afazeres na casa I, na casa da minha amada Ângela.
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Certamente a ciência diria que a reza da D. Maria servia tanto como a colherada de Rum Chreosotado que minha tia me dava toda noite, antes de dormir (“para não ficar constipado”, ela dizia). Mas é inegável que tanto uma, quanto outra faziam da minha infância um imensa cristaleira de lembranças que eu, muito tempo depois, teria muito gosto em abrir. Nem que fosse apenas para espanar o pó.
M.S.
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Na Rádio Antigas Ternuras, você está ouvindo “Bola de meia, bola de gude”, com o sempre fantástico 14-Bis.

32 comentários:

Fugu disse...

De volta ao sacrossanto lar, encontro essa delícia de espinhela caída, antiquíssima ternura.
beijo você, meu amigo!

Anônimo disse...

Engano seu, as rezadeiras benzem todo mundo e a macumba também está cheia de dotô e madame!Bela descrição de suas memórias. Quem sabe se existissem mais essas mulheres ou homems as filas do INSS e as salas de espera dos médicos ficariam mais vazias?É que tudo é invenção da caneça.Mais da metade não é nada.

Claudinha ੴ disse...

Ei Marco! "Toda vez que o adulto balança o minino me dá a mão", eu amo o 14 BIS, uma ternura minha também. Você descreveu e reescreveu suas memórias e ternuras e tenho certeza que levou muita gente a abrir a sua própria cristaleira fechada há anos.Eu já lhe disse que eu adoro suas ternuras?
Na hora do benzimento, mesmo sem saber, havia trocas de energia e a medula e o cérebro são caminhos de correntes elétricas muito fortes. Creio que isto é o que sentia, a troca de energias. Gostei demais viu? Um beijo procê.

Fernanda disse...

Vc falou, falou, falou, mas até agora não entendi o que é espinhela caída... rs...

Kisses

benechaves disse...

Marco: gostei da sua aula de História na postagem anterior. Pena que nas escolas muito acontecimento disso ou daquilo é sempre deturpado. São fatos inverídicos que ensinam há muito tempo. E vc abriu o olho com tais informações. Avalie se fosse um historiador, hein? E se não tivesse tido a tal da 'espinhela caída'. Mas, acho que a tal da 'espinhela' foi apenas um pretexto. Penso que vc estava mesmo era com uma 'paixonite' aguda pela Ângela. E como era bom a gente se apaixonar numa pré ou pós-adolescência, hein?

Um abraço...

Roby disse...

Sabe Marquinho..
Este teu texto me fez relembrar perguntas que meus filhos fazem sempre como:

"Mamãe, porque aqui no Brasil, no bairro onde vovó mora, jogar bola na rua, é melhor que na Suiça?"

"Mamãe, porque aqui no Brasil, no bairro onde a vovó mora, a gente pode jogar bolas de gude no chão (terra) e ninguém fica doente?"

" Porque aqui, podemos andar de balanço e sentir o aroma do vento?
Sim mamãe, o vento aqui no Brasil tem aroma...e é tão gostoso!"

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Marquinho, cresci sendo benzida pela vózinha que vivia no bairro...
Ahh o cheirinho de arruda..senti neste momento..
Acho que fazem mais de 20 anos que nunca mais vi um pézinho desta planta maravilhosa.

Saudades...

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Abraço grande querido.
Bom domingo.

Eärwen disse...

E como não lembrar das famosas "rezadeiras"...e quantos de nós não teve "espinhela caída" e outros tantos ...quantas vezes eu mesma fui rezada.
Adorei, como sempre.
Uma pérola incandescente com um beijo.
Eärwen

Anônimo disse...

Acredite ou não,MARCO,mas ainda hj existem estas pessoas. Anos atrás,eu mesmo já fui benzido por uma rezadeira. E senti-me muito mais aliviado,confesso.
Gostei de mais esta sua memória,hehehe
Abração e um otimo domingo a vc.

Lara disse...

Marco amei a história! Tenho acompanhado Amazônia, mas não tinha prestado atençao nessa fala. Nunca tinha ouvido falar em espinhela caída! Mas achei muito interessante hehehe
beijos!

david santos disse...

Olá!
Todo o Brasil está convidado a presenciar às 17.05 h. portuguesa a "BELA. A BRASILEIRA." SÓ VERDADES
Obrigado.

Anônimo disse...

Olá, meu não muito antigo, mas sempre terno, amigo.

Sobre o post do descobrimento do Brasil, é um bocado intrigante como a história ensinada nas escolas não apenas possui muitos erros já há muito conhecidos dos históriadores, como ainda por cima, em geral, é ensinada de uma forma muito chata. Eu gostava muito das aulas de história, mas acredito que poderia ter aprendido muito mais e melhor se ela fosse ensinada de uma forma integrada.

E só para fechar com um P.S. o meu comentário do post anterior deixo aqui registrado o meu arrependimento por não ter visto no FILO a peça "O descobrimento das américas" da compania de teatro Leões de Circo. Dizem ser muito boa, viste?

beijos

_Maga disse...

ai ai... vou me benzer, esse blog acaba de sumir com o meu comentário sobre este post... rs

Então passei pela mão de algumas benzedeiras já... acho que nunca tive "espinhela caida" hehehehe, mas sempre que tinha algo de errado e não parecia ser competencia médica era encaminhada a uma benzendeira... E como você também sentia uma sensação deliciosa de topor no corpo nessas ocasiões...

Quando foi isso? Final da decada de 80 e começo da decada de 90... onde? Na cidade de Mariópolis, no sudoeste do Paraná...

beijos

Anônimo disse...

Rapaz, tô de espinhela caída aqui. Só você mesmo para me esclarecer esta dúvida que vinha carregando comigo durante 32 anos!

Anônimo disse...

Elas ainda estão 'pelaí', furtivamente, pois hj (ou sempre?) o nome pra isso é charlatanismo, mas a história conta o qto eram necessárias, muitas vezes acertando mais que os próprios médicos. Um beijo e ótima semana*.*

Anônimo disse...

Que beleza, meu caro Marco,
O teu texto teve o condão de me levar de volta à Canindé, nao só o deu "meu tempo", mas o de sempre, com suas rezadeiras e sua doce generosidade (talvez fosse melhor falar em amor).
Médico, nunca me apartei da beleza de algumas práticas, principalmente quando a tal da ciência médica virou sinônimo de desumanização.
Tua escrita faz bem à saúde, pode crer!
Forte braço e uma excelente semana.

Saramar disse...

Querido Marco, que maravilha!
Minha bisavó era benzedeira e nos benzia sempre de espinhela caída. Eu, principalmente por causa da magreza (risos).
Como você sbe contar bem essas ternura, meu Deus!
Dá uma saudade tão grande da minha infância!!

beijos

Anônimo disse...

Espinhela caída dava no Espírito Santo também, e fora da zona urbana. Eu mesmo já fui benzido. E sou da área rural.
O que era, memso, não sei? Mas a benzição sempre funcionava.

Anônimo disse...

Marco, querido, este post me trouxe uma grande saudade de minha avó, rezadeira das boas!

Vera F. disse...

Marco, minha vó benzia para alergia e outras coisitas. Ela morava no interior do interior. Minha mãe aprendeu algumas , como para sapinho não boca de bebê(que era feito com um galhinho de fiqueira), para mau-olhado/quebranto(arruda) e para torções em geral(que é feito com tecido e linha). No ano passado cai e me machuquei feio, fui no médico, tomei anti-inflamatórios e a dor não passava. Depois de seis benzeduras da minha mãe, passou e nunca mais.
Aqui em casa todos confiam nas rezas dela.
Nunca precisei benzer de espinhela caída.

Bjos.

Francisco Sobreira disse...

É, Marco, tantas vezes uma expressão, até uma palavra, que não ouvimos (ou lemos) há décadas, nos remete à nossa infância ou à adolescência. E como é bom isso. Acho que todos nós temos as nossas cristaleiras, onde estão guardadas coisas valiosas do passado. É isso. Um abraço.

gaijin4ever disse...

Infelizmente não temos benzedeiras por aqui e por isso toda vez que volto ao Brasil dou uma desculpinha qualquer pra ser benzido (assim como a minha esposa e o filhote...).Espinhela caída é uma boa desculpa.
Abraços!

Anônimo disse...

As espinhelas caídas parecem que estão desaparecendo, mas as benzedeiras continuam firmes! Felizmente.

Anônimo disse...

Espinhela caída... Você foi longe, hem, meu caro? Como sempre, um bom texto: seguro e equilibrado. Aproveito para comunicar o novo endereço do Balaio: www.balaiovermelho.blogspot.com /Abraços/.

Anônimo disse...

Oooooooooiiiiiiii!
Sabe que até hoje minha avó de vez em quando diz: "deve estar com a espinhela caída"?
Também já passei por rezadeiras, que a gente chamava de benzedeiras, mas eu tinha medo, sei lá porquê!!! Em cidades pequenas sempre tem muito disso... e a benzedeira também chamava-se D.Maria... será que toda benzedeira é Maria? E toda Maria é benzedeira?
Beijo grande... estarei sempre por aqui, mas agora não tenho mais blog... nem orkut... coisas da vida! :(

Anônimo disse...

Oi querido,

Pois é, eu não tou me lembrando bem o que é isso, mas me lembro que qdo pequena tinha uma benzedeira na rua que tbém fazia isso em mim com o galhinho de arruda...kkkk eu tinha medo dela.
Vc já ouviu falar de "bucho virado"? que dizem os antigos só cura com reza???
Beijos

Bruno Capelas disse...

Mas q raios acaba sendo a espinhela caída , Marco?

Falando do Bowie , baixei o Hunky Dory , que tem Changes. Viciei no disco , um som bem bacanudo , que se falassem q é os Beatles , eu não desconfiava. Tu deve saber melhor que eu.

Abração!

Jéssica disse...

Boa noite, Marco!

Por favor anota o meu novo blog:

http://umlugargostoso.blogspot.com

Conto com você!

Obrigada, beijos*.*

Anônimo disse...

Putz! Hj é que consegui entrar no seu blog. O meu computador já não tem memória mais não. Tem uma vaga lembrança... rs
Bem, agora vou ler o post.
http://napontadolapis.zip.net http://dulcineia.blogspot.com

Anônimo disse...

Marco, tal como a Fernanda, de um comentário aí (tive a curiosidade de ler alguns antes, pra formar uma opinião sobre a espinhela caída), eu também nao entendi o que seja esse "mal", mas uma coisa deixo aqui escrita nao para ofender ninguém ou passar uma atitude preconceituosa: fui criado no evangelho e no evangelho a gente se recusa a acreditar em rezas. Desculpe minha opinião. Isto é pra vc conhecer um pouquinho de mim. sei que faço outras coisas que não têm o endosso do evangelho, mas... rs

P.s. nao sei pq está tão difícil entrar no seu blog. Será que só eu tô tendo esse problema?
Abraços.
http://napontadolapis.zip.net
http://dulcineia.blogspot.com

Anônimo disse...

Olá prezado Marco,
mencionei o seu Blog no meu artigo de hoje sobre espinhelas caidas.
Concordo consigo !
Há uma ternura nestas crenças.
Muito obrigado !
Ralf

Anônimo disse...

Lendo seu texto sobre espinhela caída, lembrei-me que, há 30 anos atrás, eu estudava no Sousa da Silveira e havia, no endereço citado por você, uma senhora muito boa chamada D.Zélia. Eu a conhecia de vista, por passar pela vila indo para casa. Ela morava com o filho.Acaso será sua tia?

Carlos disse...

Olá estou lhe convidade a participar do divulgasite.net um agragdor de links.

Obrigado.