quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Narciso e Eco


Vou confessar uma paixão antiga: sou fascinado por Mitologia. Especialmente a greco-romana. E isso desde pequeno. Lembro que eu viva fuçando as enciclopédias – a Internet da época – para descobrir histórias das mitologias do mundo. Embora preferisse as histórias dos deuses do Olimpo, também gostava muito da mitologia nórdica. Isso por conta do gibi do Thor, o deus do trovão, da Marvel e do desenho (pouco) animado, aquele que tinha aquela musiquinha de abertura: “onde o arco-íris é ponte/ onde vivem os imortais/ do trovão é o seu guarda-mór/ o barra limpa, o grande Thor!”. Como vocês podem ver, esta música é do tempo da gíria “barra limpa” (aos mais jovens: “barra limpa” é o mesmo que “maneiro”).
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Poucas coisas me deixavam mais encantado que conhecer o universo mitológico. Ficava intrigado como os antigos podiam prestar culto a deuses com tantos e mesmos defeitos dos comuns mortais.
Durante muito tempo, eu era um razoável conhecedor das histórias mitológicas. Mas só quando fiz diversos cursos com o prof. Junito Brandão, a maior autoridade brasileira em mitologia grega que já existiu – ele já faleceu – passei a conhecer o significado filosófico daquelas histórias. Hoje, sei que conheço muito pouco sobre o assunto.
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Como trato das minhas antigas ternuras neste blog e mitologia é, definitivamente, uma delas, estou com vontade de, vez em quando, contar algumas daquelas histórias fascinantes. Para evitar um tom excessivamente professoral (não seria o caso), abordarei as histórias utilizando ou texto dramatúrgico ou estilo literário. Acho que fica melhor.
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Começarei contando a história da ninfa Eco e do jovem Narciso. Todo mundo sabe o que é eco e todos conhecem o termo narcisista. A origem de ambos vem dos mitos (que costumavam explicar todos os fenômenos da natureza). É uma cena de uma peça que escrevi em 1991/1992, quando fazia escola de Teatro.
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CENA

ATOR (lendo um jornal) - “Estátuas de Narciso e Eco finalmente voltam a se encontrar”. “Após campanha popular, depois de muitos anos personagens mitológicos são reunidos novamente no Jardim Botânico, em fonte que será réplica da original de Mestre Valentim”.

(DOIS ATORES FICAM “CONGELADOS’ NAS POSES DAS ESTÁTUAS. OUTROS DOIS FAZEM OS PAPÉIS DE FUNCIONÁRIOS DO JARDIM BOTÂNICO. PEGAM AS ESTÁTUAS E CARREGAM PARA PERTO UMA DA OUTRA.)

ATOR 1 (Funcionário) - Putz! Raio de estátua pesada, sô!
ATOR 2 (outro funcionário) - É...Mas são bonitas, não são?
ATOR 1 - É...Até que são. Mas quem teve a idéia de tirar elas de onde estavam?
ATOR 2 - Sei lá...Soube que uma leva de gente quis reunir as estátuas e estão aí.
ATOR 1 - Mas por causa de quê?
ATOR 2 - Isso eu não sei. Mas é coisa de artista...Você sabe quem são esses aí?
ATOR 1 - Uai! E elas tem nome?
ATOR 2 - Tem, ué? Olha aqui, ó...(olhando na base das estátuas) “Eco”...e “Narciso”.
ATOR 1 - Eco? Isso é coisa de Ecologia?
ATOR 2 - Acho que né não. Isso está me cheirando a coisa de grego, igual aqueles filmes de soldado romano.
ATOR 1 - É...É mesmo.

(OS TRABALHADORES ADMIRAM AS ESTÁTUAS)

ATOR 2 - Bom...O serviço está feito. Só por causa disso, vamos almoçar?
ATOR 1 - Só se for agora! Meu “rádio de pilha’ já deve de estar quentinho!
ATOR 2 - Então vamos traçar esse arroz com ovo!
ATOR 1 - Arroz com ovo, não! Hoje a Marineuza caprichou. Tem até galinha!
ATOR 2 - Hummm...Pobre comendo galinha, um dos dois está doente!

ELES RIEM E SAEM. APÓS UM TEMPO, A ESTÁTUA DE ECO “GANHA VIDA” E COMEÇA A SE MEXER.

ECO - Oh...Mais uma vez por desígnio dos deuses, sou obrigada a reviver meu infortúnio. Não há nada que abrande o coração de Hera? E Zeus...Não se apieda de mim? A menor das ninfas? Não fiz como ele ordenou? Não entreti sua nobre esposa para que ele buscasse aventuras entre mortais. E qual foi minha paga? Hera me condenou a repetir só os últimos sons das palavras que ouço. Mas o pior ainda estaria por vir. Por obra de Eros, ardi de paixão pelo filho de Liríope...Nárkissos...Narcótico...Narciso...Tão belo e tão inútil, como a flor que lhe herdou o nome.
O seu desprezo corroeu-me as entranhas como as águias que devoram o fígado de Prometeu.
Ó, piedade, olímpicos! Livrai vossa serva desta punição!

A ESTÁTUA DE NARCISO COMEÇA A “GANHAR VIDA”, TAMBÉM.

ECO - Eis que desperta o meu amado. Belo como nunca. Seu rosto é como mármore de Paros, esculpido por Fídias, inspirado por Apolo.
NARCISO - Ah...Bom dia, Hélios! Teus dedos dourados novamente me tiram do reino de Morfeus. Mas onde estão meus companheiros de caçada? Olá! Ninguém me escuta?
ECO - ...escuta!
NARCISO - Então vem cá!
ECO - ...vem cá!
NARCISO - Ora, diga-me, por que me foges?
ECO - ...me foges?
NARCISO - Venha! E que o amor nos una!
ECO - (surgindo diante dele) ...o amor nos una!
NARCISO - (recuando) Isto é alguma pilhéria?
ECO - ...pilhéria?
NARCISO - Por Cefiso, meu pai! Estás louca?
ECO - ...louca...
NARCISO - Ora, vai-te embora! Antes que eu perca o juízo e enlouqueça também!
ECO - ...enlouqueça também...
ELA TENTA ABRAÇÁ-LO.
(camisa florida)
NARCISO - (desvencilhando-se do abraço) Larga-me! Não te quero!
ECO - ...não te quero...não te quero...

ELE SE SENTA À BEIRA DA FONTE. ELA SE AFASTA, TRISTEMENTE. NARCISO SE Á CONTA DE SEU REFLEXO NA SUPERFÍCIE DAS ÁGUAS.

NARCISO - Que bela imagem! (FAZ GESTO EM DIREÇÃO À IMAGEM REFLETIDA)
NARCISO - Oh, não! Não desapareças! (breve pausa) Eis que retornas...Ficas comigo? (ELE SORRI) Tomarei teu sorriso como “sim”.
ECO - Oh, meu Nárkissos...Ele não vê que ficou embevecido pela própria imagem. Julga corpo o que é sombra, e à sombra, adora. Admira tudo o que lhe admiro. A si mesmo deseja como eu o desejo. Oh, meu Nárkissos...O que procuras não existe. Não olhes e desaparecerá o objeto do teu amor. Vejo que não se cansa de olhar seu falso enlevo. Meu pobre Nárkissos...Mais pobre ainda sou eu. Ficarei a velar-te daqui. Serei tua rocha de descanso. E aos que passarem por aqui e em tua homenagem suspirarem de amor, repetirei seus gemidos mil vezes ou quantas vezes for o infinito. Que a beleza desse bosque seja o nosso templo. E os que se perderem nos descaminhos de Eros, aqui encontrem refrigério...
NARCISO - (para o reflexo) Em teus olhos leio: amor...
ECO - ...amor...
NARCISO - ...Com tuas promessas a sonhar eu fico...
ECO - ...eu fico...eu fico...eu fico...
(OS PERSONAGENS VOLTAM A FICAR COMO ESTÁTUAS)
M.S.

6 comentários:

Anônimo disse...

Entrei aqui por acaso e gostei tanto que parei, li, reli e voltei muitas vezes, sempre passeando silenciosamente nos seus textos tão bonitos ...

Bruno Capelas disse...

Hehhe... gostei da parte do arroz com ovo! Muito interessante , combinou bem a história romana com a brasileira.

Um abraço!

Anônimo disse...

Grande Marco:

Assim fica-se bem melhor de se reter os personagens mitológicos. Ora se! E nota máxima,com alto louvor,para tua peça universal.

Não sendo Phebo,conduziste o post no carro de fogo da deslumbrandência...

E que Éos,à barra da manhã desta sexta-feira,te acene lindezas com o archote reverente de Vésper!

Com os eflúvios dos deuses,te deixo um forte abraço.

Anônimo disse...

Correção do incorrigível aqui:

Paulo,vésper não desponta à tardinha?

Quis dizer que o brilho incomparável de vênus te dê bom-dia na alba estival carioquista...

(Ao ter de digitar as letrinhas para enviar o comentário,tem-se a chance de reler com calma nossos dizeres,mas,repito: sou troncho mesmo.)

Tchau.

Marco disse...

Puxa, Marilena! Você me fez ganhar o dia! Obrigado pela sua visita e esteja convidada para voltar sempre que desejar. O Antigas Ternuras é o ponto certo de leitores simpáticos como você.

Grande Mutante: Fico feliz por ter gostado. De vez em quando vou soltando aqui a minha "produção teatral".

Paulinho grande Patriota: O estilo e a elegância de sempre ao comentar os nossos textos...
Tanto a estrela vespertina quanto a matutina (ambas o planeta Vênus, que nem estrela é...) ficam mais brilhantes quando você assume o teclado para escrever.

Um forte abraço a todos.

Marco disse...

Grande Evandro: quem sou eu para ser um especialista em Mitologia...
Sei uma ou outra historinha, que vou postar aqui de vez em quando. Mas fico feliz que você tenha gostado e que aprecie o assunto. Os mitos de Édipo e Prometeu são altamente simbólicos. Não foi à toa que Freud estrturou boa parte de suas teorias em redor de um deles.
Um abraço. E aguarde outras histórias.