
Bem, amigos do Antigas Ternuras... Não sei vocês, mas eu lembro direitinho da primeira vez que eu me apaixonei. Não estou falando da minha primeira namorada. Eu me refiro à primeira criatura fêmea por quem caí de amores; o meu primeiro amor.
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Eu tinha 7 para 8 anos. Estudava na Escola 7.19 França. Todos os colégios daquele tempo, no antigo estado da Guanabara, tinham um número antes do nome. Não me perguntem o porquê.
Naquela época, eu estava morando com a minha tia, no bairro carioca da Piedade. Eu já era o capetinha que todos os professores de minha vida escolar tiveram a oportunidade de conhecer. Mas havia alguém que me fazia sossegar o facho, só com a sua presença. O nome dela era Elizabeth. A coisa mais linda desse mundo. Muito clarinha, longos cabelos negros, que ela amarrava em rabo de cavalo com uma graciosa franjinha quase lhe cobrindo os olhinhos cor de jabuticaba madura. Nossa! Quando ela sorria na minha direção, acontecia um certo fenômeno na minha fisiologia: minhas tripas viravam purê, o coração parava e meu sistema auditivo rateava, só captando uma espécie de zumbido.
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Se ela sabia que eu era apaixonado por ela? Não sei, acho que não. Obviamente eu nunca disse. Talvez tivesse percebido pela minha cara de anjo pidão quando olhava para ela. Uma vez pensei escrever um bilhete para a Elizabeth. Anônimo, é claro. Estava escrevendo quando minha mãe me pegou no maior flagra! Quis morrer ali mesmo. E morria um pouco a cada vez que minha mãe comentava que o “Marquinho estava apaixonado por uma tal de Elizabeth” com os vizinhos, com meus parentes, com o verdureiro, o açougueiro, o veterinário que ia vacinar a nossa cachorra, com Deus, o mundo e mais a população do bairro. Acabei desistindo do bilhete anônimo. Ficava lá, amando a menina em segredo. Ou quase.
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É uma coisa curiosa essa a de amar alguém secretamente. Pelo menos para mim era. A gente olha para a pessoa amada e põe mãos nos olhos, acariciando-a silenciosamente. A pele não sente, mas o coração pressente. Amamos um ser físico, idealizando uma criatura abstrata que só existe na nossa mente. Dá uma gastura, mas é um sofrimento gostoooso, que nem coçar frieira e bicho do pé.
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Era assim que eu amava a Elizabeth. Sonhava com ela, imaginava que cresceríamos juntos, eu já entrosado com a família dela, namoraríamos, noivaríamos e casaríamos. Viriam os filhos, os almoços na casa de nossos pais, macarrão com almôndegas ou então inhoque. Como vocês podem ver, em matéria de sonhar e prever o futuro eu era pior que a Mãe Diná!
E a menina lá, sem ter a mínima idéia do futuro que eu estava sonhando por nós dois.
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Elizabeth foi meu primeiro amor e minha primeira desilusão. O castelo de algodão doce dos meus sonhos se desfez amargamente numa bela tarde de sol.
A direção da escola já tinha avisado a todas as turmas que em determinado dia viria um fotógrafo para tirar fotos dos alunos em slide, para fazer um monóculo. Acho que vocês já tiraram foto assim. O cenário era uma mesa, sobre ela uma placa com o nome da escola, à esquerda um globo terrestre e atrás um mapa do Brasil. Cada aluno sentava, cruzava os braços sobre o tampo da mesa, sorria e clic.
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Naquela tarde ensolarada, tão logo tocasse o sinal do fim das aulas ao meio-dia, todas as turmas deveriam descer para o pátio e entrar em fila para tirar a foto. Quando a minha turma desceu já havia uma multidão na fila e não parava de chegar gente. Estava uma balbúrdia, uma azucrinação que as coordenadoras não conseguiam controlar, por mais que ameaçassem os alunos. Eu estava eletrizado, cheio de idéias para bagunças. Mas aí veio a Elizabeth e ficou a umas três pessoas na minha frente. Eu não gostava de tocar zaralha na frente do meu pequeno amor. Tive que me comportar.
A fila andava devagar, pelo visto aquilo iria durar muito tempo. Foi quando senti uma baita vontade de “tirar uma água do joelho”. Chamei a coordenadora e perguntei se poderia ir ao banheiro. Ela disse que poderia, mas eu perderia o meu lugar na fila. Olhei pra frente, tinha umas trinta pessoas. Olhei pra trás, tinha umas cem. Tudo bem, eu ia agüentar, disse para a coordenadora.
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Acontece que criança não é como adulto, que pode passar horas com vontade de fazer xixi desconfortavelmente na boa. À medida que a fila andava, aumentava a vontade de me esvair em mijo. Comecei a suar frio. Mentalmente rezava para todos os santos de plantão e mais os reservas, suplicando que aquela fila andasse rápido. A cabeça começou a doer, os gritos dos moleques só pioravam a situação, eu olhava para o rostinho da Elizabeth e até amenizava a minha agonia, mas a situação ficava desesperadora. Eu já estava perto da mesa onde as fotos estavam sendo tiradas, faltava pouco, bastava segurar mais um pouquinho, olhei para a Elizabeth, alguns pingos fugidios escapuliram e umedeceram a cuequinha, a mesa cada vez mais próxima, se ao menos a criançada parasse de gritar, olha! eu já podia até divisar os continentes no globo terrestre sobre a mesa onde bateríamos a chapa, mas eu senti que a catástrofe era iminente. Faltava bem pouco, consegui ver o mapa da África no globo, mas e todo aquele Oceano Atlântico?, não vai dar pra segurar!

Botei o Cabo da Boa Esperança pra fora e me aliviei ali mesmo. Na fila. Na frente de todo mundo. O jato da urina batia nos cascalhos do pátio fazendo um barulhinho engraçado, mas era encoberto pela gargalhada de todo mundo que estava naquela maldita fila. Todos riam, todos apontavam para o menino que fazia xixi na frente de todo mundo, todos gargalhavam...inclusive a Elizabeth.
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Urinei até o final, dei as três sacudidinhas regulamentares, guardei o bicho e continuei na fila. As risadas ainda ecoavam por todo o pátio, entretanto eu nem ouvia mais. Nem sequer escutava a bronca que a coordenadora estava me dando naquele momento. Sentia meu corpo todo anestesiado. Olhei para a Elizabeth com a certeza de que meus planos para com ela tinham escoado para o ralo. Nada mais de namoro, noivado, casamento, filhos, macarrão aos domingos... Como eu poderia continuar apaixonado por uma menina que me viu, de pinto de fora, fazendo xixi?
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Chegou a minha vez de tirar a foto. Sentei, cruzei os braços, sorri automaticamente, olhei para a câmera, clic.
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Peguei minha pasta e tomei a direção do portão da escola, no rumo de casa, naquela tarde tão bonita. Seguia em silêncio, vez ou outra chutando pedras que encontrava. Fazia noite na minha alma, mas o sol teimava em perfurar as folhas das árvores, salpicando meu caminho de gotas de luz.
M.S.
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E aí, caros amigos, vamos brincar de lembrar do primeiro amor? Com a palavra...