segunda-feira, novembro 28, 2005

Conceiçããão! Eu me lembro muito bem...


Fui assistir ao documentário “Morro da Conceição”, de Cristiana Grumbach, sobre uma área muito antiga do Rio de Janeiro. Lá, a diretora entrevistou oito moradores do local. O ponto de ligação entre eles é o fato de serem idosos e de morarem lá há muito tempo.
Claro que não é um filme para qualquer espectador. Poucos deixarão de ver o blockbuster da vez para assistir a oito velhinhos contando histórias do tempo do Onça. Embora o espectador vá aprender muito mais com o depoimento deles do que com “Marcas da Violência”, por exemplo (que é uma bosta de filme...).
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Desde que eu era pequeno gostava de ouvir os mais velhos contarem suas histórias, falarem sobre coisas do passado. Está aí a origem de minhas antigas ternuras: ouvir histórias do passado. Lembro que num boteco, perto de onde morava, os mais velhos se encontravam para tomar cerveja, jogar sinuca ou só para conversar. Eu chegava de mansinho, me esgueirava pelos cantos e ficava lá, ouvindo os “causos”. Gostava também de ir ao barbeiro, mas só aos sábados, quando a barbearia lotava. Enquanto o Cauby – era o nome de um dos barbeiros, o outro tinha o apelido de “Bacana”, mas minha mãe dizia que este não cortava direito – aparava meu cabelo muito liso (na época...), ouvia trocentas histórias que os adultos descreviam com um sorriso sacana no canto da boca. Muitas das histórias tinham saliência no meio. Outras, ou eram tristes ou engraçadas. Eu gostava de todas.
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E “Morro da Conceição” é isso. Histórias engraçadas, ou tristes, ou com alguma sacanagem (muito pouca...). Mas contadas com sinceridade. Para mim, foi uma diliça ouvir aqueles rostos gastos de tempo, acompanhar aquelas vozes curtidas no travo dos anos, seguir os olhos embaçados, mas que de repente podiam ganhar um brilho fugidio pela lembrança. Aquilo me fez pensar. O padre Antonio Vieira escreveu nos seus “Sermões...”, que somos como folhas das árvores: se o vento bate e nos mexemos, estamos vivos; se não bate e estamos imóveis, somos mortos. Aquelas folhas, amarelecidas que sejam, estão vivas, ainda se mexem ao sabor dos ventos.
Um deles, o “seu João”, confessa que não gosta de coisa velha. Não acha graça nenhuma em preservar o antigo. Os demais, especialmente a “dona Iria” e a “dona Alzira”, acham que não deviam modificar as coisas: “para a gente poder reconhecer quando ver”.
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São vidas banais, gente anônima que cuidou apenas da própria vida e da dos parentes. Exatamente como a maioria de nós. E eu saí do cinema pensando... A vida da gente passa tão rápido que daqui a pouco será a minha vez de contar histórias da minha época para uma platéia que vai se espantar em saber que houve um tempo em que se dormia de janela aberta, e que as crianças brincavam na rua até tarde, com os mais velhos sentados na calçada conversando; que não se falava alto no cinema; que a gente podia levar a namorada para ver “corrida de submarino” na praia e que você podia ficar lá, dando um malho na criatura, que nada acontecia; que a família inteira podia ir ao Maracanã, inclusive levando criança de colo, a mãe, a avó da gente...Tempo em que aquele nosso vizinho da polícia, saía de casa fardado e orgulhoso, merecedor do respeito de todos; tempo em que os alunos respeitavam os professores e ficar reprovado era a pior coisa que poderia acontecer na vida de um adolescente...
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É... fico só imaginando como as pessoas bem mais novas do que eu vão se impressionar com minhas histórias. Talvez até duvidem, achem que é coisa de velho, ficar inventando estórias...
Isso me lembra uma música do Caetano, “Minha mulher”, que diz em determinado trecho: “Quando eu for velho/quando eu for velhinho, bem velhinho/Como seremos, como serei, como será?”
M.S.

sexta-feira, novembro 25, 2005

Lerêêêêê lerê

“Vida de nêgo é difícil...É difícil como quê...”
Nem precisa desta canção de Dorival Caymmi e trilha sonora da novela “Escrava Isaura” para a gente concordar que a vida era difícil para quem tinha excesso de melanina na pele. Era? Não é mais?
As estatísticas dizem que continua sendo. Recentemente, os jornais vêm publicando dados informando que nos quase cinco mil municípios brasileiros, os negros só tem alta qualidade de vida em sete deles: São Caetano (SP), Mozarlândia (GO), Rio Quente (GO), Brasília (DF), Goiânia (GO), Cláudia (MT) e Vitória (ES). Curiosamente, destes vemos cinco do Centro-Oeste, dois do Sudeste e nenhum do Norte, Sul e Nordeste. Pois nesse nosso Brasil Mulato, neste nosso “socialismo moreno”, a vida de “nêgo” continua sendo muito difícil.
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Não há nenhuma novidade nisso. A História está aí mesmo para comprovar a grande dívida que a raça branca tem para com seus irmãos de pele escura. Na verdade, o Homem explora seu semelhante desde sempre, e isso é característico de nossa natureza. Nenhum outro ser vivente sobre este planeta discrimina sua própria espécie baseada em suposta superioridade de uma raça por outras. Ou baseada em qualquer outra alegação.
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Recentemente revi dois filmes que são exemplares para a discussão sobre como semelhantes tratam os outros, recusando-lhes a dignidade: “A Cor Púrpura” e “Amistad”. O que um tem a ver com o outro? Nada. Tudo.
Um tem história que se passa no século 20. O outro, no século 19. Um é ficção, o outro baseado em fatos reais. Mas, em contrapartida, ambos foram dirigidos pelo mesmo grande mestre – Steven Spielberg. Ambos se passam parte nos Estados Unidos, parte na África. Os dois tratam de escravidão: um, no sentido literal (Amistad), outro, figuradamente (A Cor Púrpura). E, principalmente, eles estão repletos de humanidade, onde falhas de caráter tão inerentes à natureza humana se sobressaem e nos comove.
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“A Cor Púrpura” é um romance premiado de Alice Walker, levado às telas em 1985. Conta a história de Celie (Whoopi Goldberg, memorável!), que vivia feliz pelos campos de flores púrpuras com sua irmã, Nettie, como pode ser visto na magistral cena de abertura. Nem o fato dela ter sido estuprada pelo próprio pai, que lhe fez dois filhos, imediatamente dados ao nascer para uma outra família, lhe afetava a alegria. Ela tinha a irmã, as duas se amavam muito e isto parecia bastar. O pai não lhe estuprou somente o corpo, ele também violentou a sua alma. Ele a chamava de feia, dizia que o seu sorriso era horrível e lha deu para um homem desconhecido que fora pedir a mão da sua irmã. E este viúvo, Albert Johnson (Danny Glover, outro desempenho soberbo!), a tirou do purgatório para o verdadeiro inferno.
O filme se passa entre 1909 e 1936. A escravidão desde muito já tinha sido extinta nos EUA. Mas só no papel. Pelo que mostra o filme, pais e maridos tratavam esposas e filhos como os senhores cuidavam de seus escravos. E quem se rebelava contra esse tratamento, era segregada (como “Shug” [de “Sugar”] Avery, magistralmente interpretada por Margaret Avery; a própria Nettie, em belo desempenho da jovem Akosua Busia), ou massacrada como a personagem Sophia (Oprah Winfrey, em show de bola).
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Sophia se recusava a baixar a cabeça para os homens. Seu marido, Harpo, filho de Albert não sabia como lidar com ela. Em uma cena de alta voltagem emocional, ele vai pedir conselho à Celie que lhe fala da linguagem que ela estava acostumada a lidar: “Bata nela!” Harpo segue a sugestão. Ou tenta. Sophia lhe soca o olho e vai tomar satisfações com Celie, que se defende, argumentando: “A vida é curta. Só o Paraíso é eterno”.
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Eis aí o que a religião fez àquelas pessoas. Ensinava-as a se conformar com as agruras aqui na terra pela promessa de venturas no reino dos céus. Jesus Cristo disse “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. A Igreja “traduziu” como: “é assim mesmo, negros. Vocês sofrem aqui, mas quando morrerem irão para uma terra onde jorra leite e mel”. Viram alguma semelhança entre uma outra religião que tem feito promessas semelhantes a seus fundamentalistas?
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Dentro deste mesmo princípio, em “Amistad” vemos portugueses e espanhóis comerciando com vidas humanas, da África para a América. Cada negro que entrava nos navios negreiros era batizado e recebia um nome cristão. Era a forma da Igreja justificar a escravidão: estava dando àqueles selvagens a chance de conhecer o Evangelho. Mesmo contra a vontade deles.
“Amistad” (1997) é um filme admirável. Um dos melhores filmes de temática histórica que eu já vi na vida. Aliás, para a gente que gosta de uma lista de “melhores”, que tal fazermos uma relação com os cinco melhores filmes baseados em fatos históricos que já assistimos? O desafio é para todos, mais especialmente para os cinéfilos de plantão Paulo Assumpção, Evandro, Belisa, Carla, Paulo Patriota e quem mais topar. Vamos nessa? No post abaixo eu relaciono os meus favoritos.
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A história real de “Amistad”, filmada por Spielberg, conta sobre um navio negreiro que, em 1839, é tomado pelos escravos que transportava, e que tentam voltar para a África. Como não eram navegadores, acabam levando o barco para o outro lado e aportam nos Estados Unidos. Os espanhóis fazem queixa deles à Corte americana e pedem a restituição do navio e dos escravos. Para se defenderem, os africanos só têm o empenho do ex-presidente americano John Quincy Adams (mais uma aula de interpretação de Anthony Hopkins). O caso virou questão internacional entre os USA e a Espanha.
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Mas o que mais me chamou a atenção em “Amistad” foi poder visualizar como era feito o tráfico negreiro. O início do processo começava pelas mãos dos próprios negros que capturavam outros negros para vender em entrepostos, na maior parte das vezes, trocando por aguardente e ferramentas agrícolas. Como costumo dizer, “a natureza humana não falha!”
Depois vemos as condições em que as “mercadorias” eram transportadas para serem vendidas no Novo Mundo. Ah, Castro Alves, se você viajasse naqueles matadouros flutuantes, as suas imagens poéticas no belíssimo “Navio Negreiro” seriam bem mais corrosivas!

Uma coisa é a gente ler nos livros de História sobre o tráfico negreiro, o “banzo” e outras quizilas. Outra bem diferente é ver como aqueles seres humanos viajavam.
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Os dois filmes concorreram ao Oscar, mas não levaram nada. A Academia estava reticente com Spielberg. “A Cor Púrpura” (recebeu 11 indicações e não ganhou em nenhuma) perdeu para “Entre dois amores” (Out of Africa) e “Amistad” (recebeu quatro e também não levou nada) para “Titanic”. De qualquer forma, são dois bons exemplos de como a dignidade humana pode ser enxovalhada por outros seres semelhantes. A atual qualidade de vida dos negros brasileiros é fruto de um histórico processo que começa na própria natureza humana, que é predadora de si mesma, e passa pela intolerância e ignorância de quem se julga superior a outro pela cor da pele. Passa o tempo, mas, citando uma frase da personagem “Celie”: Quanto mais tudo muda, mas continua do mesmo jeito.
M.S.

Filmes que fizeram História

Eu acho muito divertido esse negócio de fazer lista. Como aquele personagem do filme “Alta Fidelidade” (feito pelo John Cusack), que listava tudo.
Com base neste post aí de cima, estou listando os 5 melhores filmes de temática histórica que eu assisti. É claro que vou deixar alguns maravilhosos de fora e posteriormente vou ficar revoltado. Mas isso é parte do jogo. Aí vai:
- Amistad (EUA, 1997, dir. Steven Spielberg)
- Encouraçado Potemkim (URSS, 1925, dir. Sergei Eisenstein)
- Sonhos Tropicais (Brasil, 2002, dir. André Sturm)
- O vento será tua herança (EUA, 1960, dir. Stanley Kramer)
- A Queda! As últimas horas de Hitler (Alemanha/Itália, 2004, dir. Oliver Hirschbiegel)
Vou clicar logo para postar porque já estou me arrependendo e querendo listar mais uns dez!
Pronto, a bola está com vocês.
M.S.

Manderlay


Eu já tinha escrito os posts acima quando fui assistir ontem a “Manderlay” (dir. Lars von Trier). Resolvi incluir este também, pois tem tudo a ver. O crítico de O Globo não gostou, o que, de cara, me atraiu. Ultimamente, o que eles gostam eu detesto e vice-versa.
Imagino que a proposta do Lars fosse resumir, com a sua estética teatral, a história do relacionamento entre brancos e negros, nos USA. Curiosamente, eu assistia ao filme me lembrando do discurso do senador Paulino, conservador e escravagista, feito na sessão do Senado de 13 de maio de 1888, que votava a segunda Lei Áurea, a que libertava de vez os escravos. No discurso, Paulino alertava que aquela lei que seria assinada pela Princesa Regente Isabel causaria pelo menos dois grandes problemas: afetaria a economia do Brasil, que não tinha se preparado para a mão-de-obra assalariada, e jogaria milhares de negros ao Deus dará, sem a menor condição de cuidarem de si.Pois é. Em Manderlay é exatamente isso o que vemos. Acaba o filme e a platéia permanece vendo os créditos finais, ao som de “Young Americans” (“Não um mito saído do gueto/Bem, bem, bem, você carregaria uma navalha/Apenas em caso de depressão?”), de David Bowie, assistindo, catatônica, à série de fotos que mostram que os negros são o que são porque “os brancos os fizeram assim”, como diz o personagem “Timothy”.
Meus caros, “Manderlay é imperdível.
M.S.

terça-feira, novembro 22, 2005

Um poema chamado Vinícius

Olha que coisa mais linda, mais cheio de graça, é o filme "Vinícius" que vem e que passa e balança docemente a nossa cabeça.
É o documentário homenageando o "Poetinha", que chamava todo mundo no diminutivo e que chega às telas do Brasil num filmaço.
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De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
*
A estrutura do documentário dirigido por Miguel Faria Jr. é simples, mas perfeitamente funcional. Dois atores (Camila Morgado e Ricardo Blat) se preparam para apresentar um espetáculo, declamando poesias de Vinícius de Moraes, falando de sua vida, entremeados por cantores que interpretam algumas das músicas que ele letrou. Em paralelo, amigos dele contam passagens, "causos", dão a sua opinião sobre o diplomata, poeta, letrista, dramaturgo, mulherengo e "branco mais preto do Brasil".
*
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.
Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço
- Meu tempo é quando.
*
O filme ajuda a gente a desvendar os mistérios de Vinícius. Ele viveu nos extremos da paixão. Precisava dela para respirar, para escrever seus poemas, compor músicas. Somente naquele estado de combustão da alma ele se sentia vivo. Eu compreendo isso. Era quando vivia abrasado nas minhas paixões que mais me sentia criativo. Como se aquele fogo que me consumia as entranhas, amalgamasse, cinzelasse, moldasse cada palavra que eu escrevesse.
Só que não acho isso bom. Não, definitivamente, a paixão não é coisa boa. Amar, é. O amor é brisa refrescante; a paixão é vendaval que deixa rastro. O amor é para se degustar. A paixão nos entope e nunca se deixa aplacar ou saciar. O amor é sempre alegre. A paixão é sempre triste: se o objeto pelo qual nos apaixonamos corresponde, dá tristeza porque nunca estamos satisfeitos; se não corresponde, aí é o sétimo inferno, aquele mais profundo, mais tenebroso, de a gente pedir para morrer e acabar com aquele suplício.
Vinícius claramente optava por viver nessa vida abrasante.
*
Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza
Se não, não se faz um samba, não...
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Vinícius podia ser também o rei da alegria. E era quando extremadamente estava alegre, o que vale dizer, estava apaixonado. As muitas histórias que estão no filme assim atestam. E muitas outras ficaram para ser contadas. Tem uma que eu ouvi de um diagramador do jornal em que trabalhei durante um tempo. Não sei se foi verdade. O cara me garantiu que sim, que conhecia Vinícius, bebia uns gorós com ele e tudo o mais. Conto aqui, segundo ele me contou.
Um dia o Poetinha estava num bar com seus confrades de copo, quando sacou essa: "Tem tanto amigo meu virando veado, que eu vou acabar dando a bunda para saber que gosto tem". Passou um tempo, esse diagramador encontrou ele de novo e perguntou se ele tinha feito a tal "experiência". – Fiz, respondeu Vinícius. "E aí?", perguntou o amigo. Vinícius tomou mais um gole e rebateu: – Gostei, não. É um prazer doloroso e insípido.
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A morte chegou pelo interurbano em longas espirais metálicas.
Era de madrugada. Ouvi a voz de minha mãe, viúva.
De repente, não tinha pai.
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E relação de Vinícius com família foi uma coisa complicada. Com pai, mãe e irmãs, nem tanto. Teve uma família feliz, burguesa, mas feliz. Como conta na poesia dedicada a seu pai. Com as que formou ao longo da vida, com seus nove casamentos, filhos, outros tantos, sim, era complicado. Ele não largava as mulheres, saía dos casamentos por maldade, por falha de caráter. Ele foi extremamente apaixonado por cada uma delas e aí estava o problema. Ele não deixava a paixão virar amor. Quando cessava, preferia arranjar outra paixão e ao conseguir, não via mais sentido em prosseguir com a ex-paixão anterior. E ele sofria por conta disso. Sofria por ter escolhido viver assim. Sofria por sofrer na hora de dizer adeus. E era sempre um momento complicado. Mesmo assim, tenho a certeza de que todas as suas mulheres, em algum momento entenderam que o seu amor era infinito enquanto durasse.
*
Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
*
Vinícius como o apóstolo Paulo, "combateu o bom combate, completou a carreira" e seguiu para a eternidade. Deixou uma obra extremamente densa, seu legado para o futuro do mundo. Chico Buarque, em um certo momento do filme, disse que não imaginaria Vinícius vivendo nos dias atuais, dias completamente "anti-Vinícius". Ele está certo. O dramaturgo Fernando Arrabal, em O Globo, disse que "hoje é praticamente impossível transgredir, provocar". E o Poetinha, como grande transgressor, encontraria dificuldade em viver em meio a mediocridade em que, miseravelmente, vivemos hoje.
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Você que só ganha pra juntar
O que é que há
Diz pra mim o que é que há?
Você vai ver um dia
Em que fria você vai entrar.
Por cima uma laje
Embaixo a escuridão,
É fogo irmão! É fogo irmão!
*
Quando acabou o filme, passando os créditos finais, eu comecei a aplaudir e TODO o cinema veio atrás de mim, aplaudindo também. Se você for assistir, depois da última e deliciosa história que o Chico conta para o Toquinho, aplauda também. E saia do cinema cantarolando "se todos fossem iguais a você..."
M.S.

sábado, novembro 19, 2005

A verdadeira Avenida Brasil


Nesta semana (16 de novembro), comemorou-se, aqui no Rio, os 100 anos da Avenida Rio Branco. “E daí?”, poderiam perguntar os meus milhares de leitores.
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(Parêntesis: se o Luis Fernando Veríssimo, o Arthur Xexéo e o Agamenon do Casseta e Planeta, que têm milhares de leitores, dizem que possuem 17, então eu, que tenho 17 leitores, posso dizer que tenho milhares. E não discuta comigo. Sou virginiano. O Zodíaco e os psiquiatras dizem que não adianta discutir com a gente. Fecha parêntesis).
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Na verdade, essa comemoração não deveria estar circunscrita ao Rio de Janeiro. Primeiro, porque a avenida foi uma obra federal, logo, ela pertence a todos os brasileiros. Segundo, porque é possível contar boa parte da História do Brasil utilizando aquela faixa de asfalto.
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Ela nasceu com o nome de Avenida Central e veio no rastro de obras que visavam embelezar a cidade e melhorar a qualidade de vida da então capital da República. Em 1902, quando o presidente Rodrigues Alves assumiu, ele pôs como uma de suas prioridades de governo sanear o Rio de Janeiro, cidade onde estava o centro de poder do país e também o principal porto brasileiro.
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A capital àquela época vivia infestada de todo o tipo de peste: varíola, febre amarela, tifo, tuberculose...Já tinha navio que estava evitando aportar aqui com medo de pegar uma ziquizira dessas.
As ruas da cidade eram estreitas, as casas das freguesias do Centro eram um amontoado de gente, vivendo em condições sub-humanas, alguma coisa precisava ser feita. Rodrigues Alves nomeou Oswaldo Cruz para cuidar das doenças do povo e Pereira Passos para os males urbanos do Rio de Janeiro.
O então ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas, Lauro Muller, decidiu abrir uma grande avenida que unisse o novo porto, lá no cais da Prainha (hoje, Praça Mauá) à nova Avenida Beira-Mar, na altura do convento d’Ajuda (hoje Cinelândia), onde se instalaria um obelisco comemorativo. O engenheiro Paulo de Frontin seria o encarregado. As obras começaram em 1904. E digo “obras” querendo dizer a derrubada de 641 imóveis que estavam no caminho da avenida que tiraria o ar colonial do Rio e lhe daria ares de Paris, o grande sonho de consumo da classe dominante da época.
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Quando eu dou minhas aulas ou faço minhas palestras sobre a História Urbana do Rio de Janeiro, eu dedico um capítulo especial para falar da Avenida Central. A sua construção tem “causos” interessantíssimos. Um dia desses eu conto alguns deles aqui, se vocês se interessarem, é claro. Mas essa Avenida de nome Central, que depois da morte do barão do Rio Branco tomou-lhe o nome, merece ter o seu primeiro centenário muito comemorado. Seus prédios originais, de forte inspiração francesa, foram construídos para duram cem anos. Não duraram nem 50... O furor modernista começou a derrubá-los antes de o século virar sua primeira metade. Hoje, em termos arquitetônicos, o que a salva de ser mais um “cânion” de concreto e vidro que infesta as grandes cidades é justamente as antigas e originais edificações que sobraram da sanha destruidora.
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Essa avenida merecia mais respeito. Como escrevi acima, boa parte da História deste país aconteceu ali. Querem ver?
Em 1930, os ventos revolucionários que vieram do Sul com Getulio Vargas, precisavam de um símbolo para concretizar a vitória da tomada do poder, e foi ali, no obelisco da Rio Branco,onde os gaúchos amarraram seus cavalos, que isto aconteceu.

Ainda naquela década, quando o governo Vargas piscava os olhinhos para o nazifascismo, foi na Rio Branco que os integralistas – versão tupiniquim do nacional-socialismo alemão – fizeram sua parada, exibindo suas milícias.
Depois da guerra, quando os brasileiros ajudaram a derrotar os países do Eixo, ao retornarem vitoriosos, desembarcaram no cais da Praça Mauá e desfilaram pela Rio Branco, celebrando o retorno ao país.
Com o auge da Rádio Nacional, instalada num prédio da Praça Mauá, praticamente na esquina da Rio Branco, era na centenária avenida que os artistas passavam com uma multidão de fãs no seu encalço. E foi na mesma avenida que passaram dois cortejos fúnebres que pararam a cidade: o de Francisco Alves, em 1952, e o de Carmem Miranda, em 1955.

Quando em 1964, o país vivia grande instabilidade política, que culminaria no golpe militar de 1 de abril, foi na Rio Branco que aconteceu a passeata que serviu como avalista do movimento militar. Castelo Branco, nas conjurações das forças armadas, dizia que os militares só deixariam os quartéis para derrubar o governo se a sociedade civil apoiasse. E esta respondeu com a “Marcha da Família com Deus e pela Pátria”, que desfilou, de velas acesas na mão, pela famosa avenida.

Quatro anos depois, o povo clamava por liberdade. Os intelectuais e políticos de vanguarda saíram às ruas para protestar contra e o governo na célebre “Passeata dos Cem Mil”, que atravessou a Avenida Rio Branco de ponta a ponta.
Ao longo de toda ditadura militar, as manifestações contra o regime aconteciam ali, ao longo da Rio Branco, principalmente na Cinelândia.
Ali, eu vi o Brizola fazer o seu primeiro comício rumo à vitória nas eleições de 1982 e ali ele voltou, já como governador eleito, para falar para a multidão. Na Rio Branco, assisti a um grande comício do PT, inclusive tirando fotos de militantes (como eu) que se candidatavam a deputados, prefeitos, senadores etc.

Na Rio Branco, na altura da igreja da Candelária, eu assisti chorando ao Comício do Milhão pelas Diretas Já. Quatro anos depois, eu estava ali, também emocionado, no comício do Lula, que enfrentaria o Collor.
Tempos depois, vi na Rio Branco estudantes com a cara pintada, gritando “Fora Collor!”. Estávamos todos de camisetas pretas, pedindo a saída daquele safado.
E foram muitos outros comícios, festas, shows que aconteceram naquela avenida. Estive em alguns, o que me fez ser um pouco “testemunha ocular da História”, que nem o slogan do “Repórter Esso”.
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É por essas e outras que eu digo que a verdadeira Avenida Brasil é a Rio Branco. Ela daria um livro. Daria, não. Deu. O jornalista (como eu) e apaixonado pela História (como eu) Eduardo Bueno, lançou, nesta semana o livro “Avenida Rio Branco – Um século em movimento”, em parceria com o fotógrafo Fernando Bueno. Ambos gaúchos, talvez tentando redimir a heresia dos conterrâneos em amarrar seus cavalos no obelisco, em 1930.
Ganhei o livro, mas ainda não li. Tem muita coisa na frente para eu ler. Mas, só ao passar os olhos, deu para sentir que é uma obra magnífica.
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Por isso, meus caros, saibam que comemorar o centenário da Rio Branco não é privilégio de nós, cariocas. Façam a festa, brasileiros. A Avenida Central é de todos nós. A Avenida Central do Brasil!
M.S.

quarta-feira, novembro 16, 2005

Náufragos de todos os oceanos


A Revista do Globo tem uma seção (Íntimo e pessoal) em que se faz as mesmas perguntas para entrevistados a cada semana. Num domingo desses foi a vez de Hamilton Vaz Pereira, diretor de Teatro e membro do legendário grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone. Na pergunta “quem você levaria para uma ilha deserta?”, ele respondeu:
- Os náufragos de todos os oceanos.
Bonita essa frase! Ela contém uma bela imagem. Penso que ela daria um bom título para um conto ou uma poesia. Algo assim:
Tem noites em que dentro de mim
Uivam todos os lobos da floresta
Cantam todas as sereias da Grécia
Faz-se todo silêncio das pedras.
É quando eu,
Bêbado de esperança,
Grávido de paz,
Estendo a mão aos
Náufragos de todos os oceanos.
E deixo que eles saibam
Que estou aqui.
Sempre,
Sempre...
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Este post é dedicado à minha amiga Claudia, do belo e poético blog Oxigênio. Não sou tão talentoso quanto ela, mas estou me esforçando...
M.S.

terça-feira, novembro 15, 2005

A voz do povo é a voz de Deus

Estava batendo papo com um amigo. Falávamos dos problemas modernos, da nossa saúde, que virou o desenho animado “A vaca e o frango”, do randez-vous da política brasileira etc. Foi quando eu mandei essa:
- Ano que vem tem eleição. Vai ser hora do povo escolher aquelas criaturinhas sórdidas para representá-lo no Congresso e no Palácio do Planalto.
O cara respondeu:
- Paciência. A voz do povo é a voz de Deus.
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Na hora, me lembrei da origem desta expressão.
Na Grécia, havia um templo dedicado ao deus Hermes (Mercúrio, para os romanos) que funcionava como oráculo, mas era diferente do consagrado a Apolo, em Delfos. Lá, não tinha nenhuma pitonisa para interpretar a mensagem da divindade. Quando alguém queria fazer alguma consulta a Hermes, entrava no templo, entregava a sua oferenda e ia até a estátua do deus do comércio. Fazia uma pergunta baixinho, junto ao ouvido dele e, em seguida, tampava os ouvidos. Saía do templo, que ficava em uma rua muito movimentada, e, no meio da rua, destampava os ouvidos. A primeira coisa que ele ouvisse naquele burburinho era a resposta de Hermes à sua pergunta, porque “a voz do povo era a voz do deus”.
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Como na seguinte situação hipotética. Um jovem grego, sensível e de boa maneiras, vai até o templo para fazer uma consulta. Oferenda feita, o jovem vai até a estátua e pergunta: “Ó poderoso Hermes, o que eu devo fazer da minha vida?” Em seguida tampa os ouvidos e sai do templo para ouvir a resposta do deus. E naquele momento, estava havendo uma discussão entre dois comerciantes, bem pertinho dali. Exatamente quando o rapaz destampa os ouvidos, ansioso para saber o que Hermes tinha a dizer para ele, um dos contendores grita para o outro: “Ora, vá tomar naquele lugar!”
Pronto! O rapaz acabava de ganhar uma razão de viver!
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Este templo funcionou até fins do século IV d. C. Ali, se cultuavam os mistérios de Hermes Trimegisto. Foi o último templo a ser desativado, foi o último deus mitológico a receber oferendas. O Cristianismo àquela época já tinha se desenvolvido. Era hora da nova religião substituir as antigas crenças.
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Eis que, dezenas de séculos depois, aquela frase do culto do deus Hermes servia para justificar a obrigação do voto para o nosso povo eleger um bando de picaretas...
Pobre deus Hermes, pobre povo...
Se bem que Hermes também era cultuado como o “deus dos ladrões”. É, então faz todo sentido...
M.S.

sábado, novembro 12, 2005

Homem Randômico


Dias desses, eu fui visitar o blog mucho loco do alemón. Ele é um dos 4 Cavaleiros do Após-Calipso (junto com Ronie, Lúcio e Leônio), que se reúnem às vezes lá no Planalto Central para ouvir, no toca-discos, Polly, Os Incríveis e outras antigas ternuras. E lá no Club Anti Social do cara (link ao lado) vi um post em que ele citava a home page Stile Media A grande novidade é que o conteúdo deste site é randômico – palavrinha moderna para “aleatório”. Isto quer dizer que cada vez que você entrar lá vai aparecer uma página diferente, sem seguir nenhuma seqüência lógica preestabelecida. O conteúdo é pura baixaria. Se quiser ver, clique aqui por sua conta e risco.
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Mas o que me chamou a atenção foi essa palavrinha: “randômico” e seu significado. “Aleatório” é palavra bonita, de origem latina (radical “alea”=sorte). Randômico é de origem anglo-saxã, feia, esquisita (radical “random”=acaso). Fiquei imaginando: e se existisse um Homo randomicus? Alguém que fosse absolutamente imprevisível?
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Aí eu me lembrei que houve época em que eu queria ser assim. A idéia era se alguém se aproximasse de mim não saberia como eu iria proceder. Uma espécie de metamorfose ambulante raulseixiana. Era para criar conflitos psicológicos que deveriam ser solucionados. Eu estava começando a fazer Teatro e sabe como é, né? A gente fica meio esquisito mesmo. Eu costumo dizer que fazer Teatro não tem contra-indicação, mas certamente tem efeitos colaterais. Ninguém fica a mesma coisa depois que pisa em um palco.
De qualquer forma, a fase passou. Ainda bem. Ninguém iria me agüentar daquele jeito. Mas já pensou como seria uma pessoa randômica? Já imaginou lidar com um chefe randômico? Um marido? Uma esposa?
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As criaturas mais randômicas que eu conheço são os animais e as crianças. De forma geral, ninguém pode dizer como aquele filho da vizinha vai agir, ou mesmo garantir que o seu periquito vai proceder sempre de forma esperada. No meu tempo, adolescente era ser absolutamente randômico. Hoje, é a coisa mais previsível que eu conheço. Eles se vestem igual, andam igual, falam igual, procedem de forma absolutamente uniforme...
O Lula de 20 anos atrás era muito mais randômico do que hoje. Ele era uma força da natureza, sua indignação era genuína, mesmo reconhecendo a falta de cultura daquele cara você respeitava o seu talento, a sua capacidade de mexer com a multidão. Hoje... bem... não precisamos nem falar nada. Vamos pular esta parte.
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E os políticos? Pode haver um político randômico? Mesmo a Heloísa Helena, que às vezes parece agir como se tivesse possuída por um belzebu capeta dos brabos, revela um certo padrão observável de comportamento. Não, definitivamente política e randomização não combinam.
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E se eu fosse criar um personagem de quadrinhos? O “Homem Randômico”? Ele seria herói ou vilão? Provavelmente, seria um herói para uns e um vilão para muitos. Assim como o Homem-Aranha. Sempre apareceria um “J. Jonah Jameson” para identificar uma ameaça naquele ser que sempre se comporta de forma inesperada.
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Imagino ser complicado agir, se comportar de forma inusitada nestes nossos tempos. A vida social nos padroniza e quem não está padronizado assustará os que são. Veja bem: não estou dizendo que ser randômico é agir, por exemplo, como marginal ou como um punk. Os marginais e os punks são absolutamente previsíveis. Ninguém espera que um punk use smoking e vá dançar “Fascinação” num baile de debutantes. Da mesma forma, não há um traficante que se disponha a fazer um trabalho comunitário para o “Amigos da Escola”. O que eu imagino como ser randômico é agir de forma totalmente inesperada, mesmo! Doa a quem doer! Será que alguém teria coragem?
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Eu confesso que nem tentaria. O planeta, o país, a cidade já estão suficientemente conflituosos para eu arranjar mais sarna para coçar. Vivemos tempos terríveis. Já houve época em que havia grandes homens para nos inspirar e para nos abrigar em suas sombras. Hoje, estamos cercados por pessoas pequenas, por uma sórdida moral do salve-se quem puder ou, pior ainda, a mentalidade do “primeiro os meus interesses e o resto que se exploda”. Já nos é suficiente viver com retalhos de dignidade, tentando ser o sal da terra, lidando com o previsível e, absurdamente para muitos, resistindo a entrar no cordão.
M.S.

quarta-feira, novembro 09, 2005

Allons enfants de la patrie!


1789: a França arruinada vê a burguesia e os trabalhadores clamarem por reformas que acabem com o Absolutismo para instaurar um governo constitucional que proporcione liberdade, igualdade e fraternidade. A nobreza e o clero resistem e em 14 de julho uma rebelião popular derruba o rei Luís XVI.
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1871: Estoura a Comuna de Paris. A Comuna era composta por conselheiros municipais eleitos nos bairros da cidade. Seus membros eram operários, membros do proletariado que resolveram se insurgir contra o Estado burguês corrupto. Eles pregavam o fim do exército permanente e a quebra do poder da Igreja, afastando-a inclusive dos colégios e universidades, para que o saber científico proliferasse longe dos dogmas retrógrados. Durou cinco dias. Foram esmagados pelas forças do Estado, que romperam as barricadas postas nas ruas da capital.
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1968: Quase cem anos depois da Comuna de Paris, barricadas foram novamente erguidas nas ruas da cidade-luz. Estudantes universitários influenciados pelas idéias de Proudhon, Lênin, Lacan, Sartre, Barthes ocupam as ruas pregando uma revolução utópica que acabasse com o conservadorismo do Paris. Incitados por pichações nos muros, como as famosas “Corre, camarada, o Velho Mundo está atrás de ti” e “É proibido proibir”, estudantes esquerdistas tentavam atrair trabalhadores e camponeses para a sua luta. Foram vencidos nas ruas e politicamente.
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2005: Na atual França globalizada, carros são incendiados e a polícia é recebida a bala nos bairros da periferia de Paris. Há uma vaga motivação baseada na fratura social que marginaliza imigrantes e seus filhos, tratando-os como cidadãos de segunda classe. Mas o certo é que gangues de rua, baderneiros, vândalos urbanos aderiram e tomaram de assalto as ruas e o movimento está se alastrando por outras cidades francesas. Não há líderes, nem reivindicações objetivas. Apenas o gosto pela adrenalina da destruição. Somente, e tão somente, pelo prazer de destruir.
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Como diria Cazuza: “ideologia, eu quero uma pra viver”.
M.S.

domingo, novembro 06, 2005

Podres Poderes

"Então o Senhor fez chover do céu enxofre e fogo sobre Sodoma e Gomorra; destruiu essas cidades e toda a planície, com os habitantes das cidades e a vegetação do solo. (Gênesis 19:24-25)"
"Então Deus disse a Noé: - Para mim, chegou o fim de todos os homens, porque a terra está cheia de violência por causa deles. Vou destrui-los junto com a terra. (...) Eu vou mandar o dilúvio sobre a terra, para exterminar todo ser vivo que respira debaixo do céu: tudo o que há na terra vai perecer". (Gênesis 6: 13-14 e 17)
Não sei exatamente o que as cidades de Sodoma e Gomorra fizeram ou o que o planeta andou fazendo no tempo de Noé para ser castigado por Deus daquela forma, mas seja o que for, o mundo atual está bem pior. Acho melhor tirar a roupa do varal que vem fogo aí. E vamos preparar os barcos, que as águas vão rolar!
Este texto funciona melhor se for lido ao som de “Podres poderes”, do mestre Caetano Veloso. Portanto, som na caixa didjêi!
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(Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais)
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Que os Criacionistas não me ouçam, mas a Ciência tem como certo que o Homem, como se conhece hoje, se originou na África. Aliás, tem muito defensor do Criacionismo que aceita o continente africano como local provável do Éden, o Paraíso onde Adão e Eva foram gerados. E quando foram expulsos de lá, ainda no que seria a África, viveram e geraram o princípio da humanidade.
Se a nossa gênese está no Continente Negro, o Homem está cuspindo no berço que o gerou. Aliás, não é de hoje. Tem é tempo que povos militarmente mais poderosos tratam os nativos africanos como lixo.
E é isso o que vemos em dois filmes recentes, que estão em cartaz entre nós. Do primeiro, o “Senhor das Armas”, já comentei aqui. É sobre o mais recente, “O Jardineiro Fiel”, que eu gostaria de tecer alguns comentários agora.
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Pessoalmente, eu traduziria o título original “Constant Gardener” (USA, 2005, dir. Fernando Meireles) como “O Jardineiro Persistente”. Acho mais apropriado. No filme, Ralph Fiennes faz o personagem “Justin Quayle”, um funcionário do Alto Comissariado inglês, casado com “Tessa Quayle” (Rachel Weisz), voluntária ativista, que trabalha na África. Ela suspeita de que algumas mortes de quenianos foram causadas por uma medicação nova e começa a investigar. Nessa investigação, mexe com interesses de empresas poderosas, o que acaba lhe trazendo problemas.
O roteiro é baseado no livro de mesmo nome, escrito por John Le Carré, famoso autor de best sellers, especialmente ligados a espionagem.
Ah, então, a história é ficção? Sim, é. Mas será que escrever sobre a possibilidade de grandes laboratórios usarem africanos como cobaias na experimentação de novos remédios é um desvario? Não, não é.
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No filme, uma determinada empresa multinacional de medicamentos prevê um futuro surto epidêmico de tuberculose no mundo, que nenhuma penicilina, nenhuma vacina BCG vão segurar. Para isto, criaram um poderoso antibiótico. Mas, e se ele tiver efeitos colaterais? Bilhões de dólares estavam em jogo, não se podia facilitar. A solução foi contratar uma empresa que testasse o medicamento em seres humanos sem condição de processar o laboratório, ou seja, africanos do Quênia. Um dos personagens do filme diz: “afinal de contas, eles estão condenados a morrer cedo, mesmo”. Não deixa de ser uma lógica insofismável e pragmática, embora mande a ética para o alto dos mastros das caravelas. (Parêntesis cultural. Os portugueses chamavam aquele ponto de observação no cume do mastro principal das caravelas de “caralho”. Quem ficasse naquele cesto, estaria debaixo de sol causticante ou chuva pesada, além de balançar mais que em qualquer outro ponto do navio. Por isso, quando algum marujo se comportava mal, o capitão o mandava: “vai pro caralho!” Não acredita? Então clique aqui. Antigas Ternuras: um blog que se preocupa com a sua cultura geral. Fecha parêntesis).
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O pior é que o tal remédio tinha mesmo efeitos colaterais. Muita gente morre, mas seus registros desaparecem - como se eles não existissem - e são enterrados em valas clandestinas, sem que ninguém, nem a família, soubesse. Mas os africanos não protestavam? Eles nem sabiam que estavam sendo usados. Se a gente pegar os indicadores sociais da África Subsaariana – que, comparadamente, fazem o Piauí parecer a Noruega – vai ver que a expectativa de vida lá é baixíssima. Atendimento médico é algo que poucos verão na vida. Aí, quando aparece uma empresa que resolve instalar um posto de saúde no meio da savana, quem está lá não vai pensar duas vezes na hora de tomar o que eles recomendam. Alie-se a isto alguns milhares de dólares irrigados na mão de governantes corruptos, que fecham os olhos para o que acontece por lá.
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(Ou então cada paisano ou cada capataz
Com sua burrice fará jorrar sangue demais
Nos pantanais, nas cidades, caatingas e nos gerais)
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Pergunto novamente: isto é ficção descabelada?
Recentemente, um amigo deste blog apresentou estatísticas dando conta de que a pobreza desesperadora no mundo estava diminuindo. Dados da Scientific American Brazil indicam que em 20 anos, o total de desesperadamente pobres no mundo caiu de 1,5 bilhão para 1,1 bilhão, com queda mais acentuada na Ásia. Baseado nesses números, ele prevê a redenção da pobreza em 2050, por conta do “progresso científico e tecnológico contínuo aliado à acumulação auto-reforçadora da riqueza. Forças de mercado e livre comércio: esta é a receita.”
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Hum... o sistema capitalista preocupado em sanar as desigualdades sociais do mundo? Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial. E essa nova ordem globalizada precisa, mais que nunca, que haja exploradores e explorados, senão a economia neoliberal não se desenvolve. Este mesmo neoliberalismo que já afirmou que a África está fora do jogo, que ela é questão de assistencialismo para a Cruz Vermelha, ONU. Unicef e outras do gênero.
E aí voltamos para o filme: a África está realmente fora do jogo? Ou ela entra como bucha para o canhão das economias mais fortes estourar como um trovão?
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Em determinada parte do filme, vemos dirigentes das empresas responsáveis por aquela matança, contritos, rezando na igreja para Deus. Eu fiquei na dúvida: para que Deus eles estavam rezando? A propósito: Para que Deus homens-bomba rezam quando partem para explodir com pessoas, crianças que nada tem a ver com política de governo? A qual divindade os traficantes se referem quando dizem “Fé em Deus” e saem armados para o confronto com outras facções? Em nome de que Deus o presidente da nação mais poderosa do mundo manda tropas para milhões de quilômetros de distância com o intuito de acabar com ameaças que ele mesmo inventou?
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(Será que será que será que será
Será que essa minha estúpida retórica
Terá que soar, terá que se ouvir por mais zil anos?)

Como é que é, Caetano?

(Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Morrer e matar de fome, de raiva e de sede
São muitas vezes gestos naturais)
M.S.

sexta-feira, novembro 04, 2005

Assim caem os impérios

Imagine uma cidade onde os políticos são corruptos, os poderosos usam e abusam do sexo, utilizam dinheiro para comprar aliados e não têm nenhum escrúpulo para atingir seus objetivos.
Você pensou em Brasília? Errou.
Washington? Errou também.
Estou falando de Roma. Não a atual, mas a do tempo de Júlio César, por volta do ano 50 a.C.
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É como podemos verificar na minissérie “Roma”, que está indo ao ar pelo canal HBO (domingos, 22h, com reprise em alguma noite durante a semana).
Provavelmente é a série mais cara da história da televisão (até agora). Toda filmada em Cinecittá, mitológico estúdio italiano, com cenários monumentais e bastante reais. Nada daqueles ambientes assépticos que a gente se acostumou a ver nos antigos filmes sobre o império romano. É tudo sujo, encardido, com paredes pichadas. As cenas são cruas, atores e direção não aliviam em nada.

Além do destaque que tem os personagens famosos – Julio César, Marco Antonio, Átia, Servília (mãe de Brutus), Otávio, Pompeu, Porcius Cato etc, vemos outros personagens pouco conhecidos, mas que existiram e não tiveram suas histórias relatadas pela História. Falo dos centuriões Lucius Voreno e Titus Pulo (veja na foto). Mas não quero antecipar nada. Prefiro que vocês mesmos verifiquem e tirem suas conclusões. Uma curiosidade: reparem na personagem Níobe, representada pela atriz Indira Varma. Ela é uma sósia feminina do Rodrigo Santoro. Se alguém quiser ver mais sobre a série, clique aqui .
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No mesmo tom da série “Roma”, em que vemos que as falhas da natureza humana não são nenhuma novidade, recomendo um filme que é um dos melhores deste ano e deste século. Pelo menos, até o momento atual presente que se conhece hoje em dia (copyright PRK-30). Estou falando de “Crash – No limite” (2005, USA/Alemanha, dir. Paul Haggis). Ele também poderia se chamar de “O declínio do império americano”, se já não existisse um outro (excelente) filme com este nome. Mas se na Roma de César, a República mostrava sua decadência, mesmo que o império só fosse se extinguir cinco séculos depois, em “Crash”, vemos que o poderio financeiro-militar dos Estados Unidos pode durar mais uma porção de anos, mas sua decadência moral faz a sua sociedade feder como carniça.
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Finalmente, o filme que eu estava esperando há muito tempo, por conta de sua carpintaria dramatúrgica. Ele pode ter várias leituras, inclusive a partir do título – Crash – que remete a batida, colisão e realmente, carros e pessoas estão em constante colisão neste filme. Mas eu prefiro analisá-lo por outra ótica: pela sua história, onde a natureza humana é mostrada em toda a sua verdade, sem filigranas, sem tons edulcorantes. Está lá, o que somos: ora capazes de salvar alguém, ora capazes de desgraçar os outros. Ninguém é monodimensional – só “bonzinho” ou só “peste” - nem a vida é bimensional, tendo por únicas alternativas o “bem” e o “mal”. Não somos personagem de telenovela, nem das comédias açucaradas do cinema, muito menos levamos a vida como está nos desenhos animados da Disney. Viver machuca. Dói. Corrói.
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Esta abordagem da nossa real natureza eu praticamente não tinha visto em cinema. Só vira em algumas histórias em quadrinhos. E em “Crash” é a grande atração.
O que pensamos quando um policial vem nos encher o saco, às vezes até sendo inconveniente? Que ele é um bom filho da puta ou que ele pode ser um filho extremado, que está alterado por conta do pai doente e não consegue uma internação porque o plano de saúde não permite?
E quando a nossa empregada doméstica pode ser muito mais amiga no sentido inteiro da palavra do que coleguinhas que nos acompanham no shopping? Até onde somos incorruptíveis? Até um valor em dinheiro ou até a vida de um irmão depender de nossa, digamos, flexibilidade de caráter?
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Pegue conceitos como estes e adicione personagens tão díspares como dois ladrões, um promotor e sua esposa perua, um consertador de fechaduras e sua filha, um diretor de TV negro e sua esposa, um policial de comportamento indigno e seu parceiro que tem dignidade e não concorda com seus métodos, um chinês atropelado e arrastado quando estava entrando na sua van, uma família de iranianos (no filme, são chamados de persas), chefiada por uma pai que só quer ser tratado com dignidade, um policial correto e sua mãe preocupada com o outro filho que vivia em más companhias e você terá um filme inesquecível. Muito bem dirigido, com excelentes atuações, diálogos fantásticos, como o dos dois negros no bairro chique dos brancos.
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No mais, o que se tem são doses maciças de humanidade. Vemos a natureza humana espremida e exposta como o carnegão de um furúnculo, com a dimensão real de um pedaço de calcáreo, que existe e pode ser usado para construir ou para agredir. Assim como o era na Roma dos Césares. Assim como o é na Los Angeles atual. Assim como é no nosso quarteirão.
M.S.