
Essa aventura daquele meu amigo, que para preservá-lo chamei de “Jerry Lewis”, me foi contada pelo meu parceiro Heitor.
Vinha o Lewis descendo pela Estrada do Alto da Tijuca. Para quem não conhece, é uma estradinha muito sinuosa, em mão dupla e em uma espécie de serrinha que liga o bairro da Tijuca à Barra da Tijuca. É muito difícil fazer ultrapassagens naquela estrada. Se um cristão tiver a má sorte de ficar atrás de um caminhão ou ônibus, está lascado. Vai ficar naquela marcha lenta por muito tempo.
Pois é. Mas, como eu dizia, lá vinha o Lewis descendo a estrada quando encontrou um ônibus bem morrinhento pela frente. A uns 10km por hora... O cara ali, desesperado atrás do ônibus e atrasado para um compromisso.
Na primeira chance que ele viu de ultrapassar o ônibus pela contramão, jogou o carro para a esquerda, socou a bota no acelerador e lá foi ele.
O que ele não contava é que o motorista do ônibus, só de sacanagem, também acelerasse. O cara na contramão, descendo o Alto e nada do ônibus dar passagem pra ele. Lá iam os dois, emparelhados, Jerry não tinha mais como voltar para onde estava, pois um outro carro encostou na traseira do ônibus. Entram numa curva e vem subindo um caminhão de bujões de gás; o ônibus acelerando; Lewis acelerando; se continuasse daquele jeito, a colisão seria inevitável entre o carro de Jerry e o caminhão. A única alternativa seria jogar o carro todo para a esquerda e subir na calçada. Eis que providencialmente surge um borracheiro bem adiante, à esquerda de Lewis. Ele nem pestaneja: entra no borracheiro cantando pneu, freando, quase um cavalo de pau, numa nuvem de poeira. Fregueses e funcionários olharam praquilo de boca aberta, mal acreditando que alguém pudesse entrar ali daquele jeito.
Nisso, Jerry sai do carro com toda a calma, quase assoviando, olha em volta, assim, displicentemente e pergunta:
- Hammm...Escuta...Quanto é que está o jogo de pneus, heim?
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Outra.
O Heitor tinha conseguido uma casa na praia de Maricá pra nossa turma. Íamos uns oito. Heitor já estaria lá, nos esperando. Dividimos as pessoas pelos carros, o Jerry era o que melhor sabia chegar na tal casa. Teríamos que segui-lo. Olha só o perigo...
Tirante o fato dele não se decidir quando estava diante de uma bifurcação, entre entrar à direita ou à esquerda - ele optava por ir pelo meio, mesmo se tivesse uma placa no caminho – chegamos à Maricá sem problemas. Lá, só tínhamos que chegar até a tal casa, que ficava perto da praia. Seguíamos o Jerry. E era um tal de entra à direita, entra à esquerda... Daqui a pouco o carro do Lewis desapareceu. Como tinha um no grupo que sabia um pouquinho como chegar na casa, fomos atrás dele. Passamos por uma rua cheia de casas com quintal e muro baixo. Nos quintais, varais exibiam “roupas comuns dependuradas tal e qual bandeiras agitadas”, como diz na música “Chão de Estrelas”. Eis que de um desses quintais, surge o carro do Jerry, arrastando um varal, com lençol, camisola agarrado na capota e até uma calcinha pendurada na antena do carro.
- Pô! Cadê vocês???? – perguntou a alucinada criatura.
Depois de um ataque coletivo de gargalhadas, fomos ao encontro do Heitor e passamos um final de semana maravilhoso.
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Uma outra vez, fomos para uma casa em Itaipava, dos pais do Heitor. Clima de serra, beleza pura. Chegando lá, um do grupo resolve pregar uma peça no Jerry. Tínhamos levado uns belisquetes (amendoim, biscoitinhos, fandango, só besteira...). Aí o cara viu lá um saco de Bonzo. E teve a idéia de botar um pouquinho num prato junto com os potinhos de tira-gostos. Com certeza o velho Lewis não perceberia e iria atochar a mão no pratinho de Bonzo. No que ele propôs esse plano maquiavélico, o demente aqui, olhos brilhando, não só aplaudiu como se ofereceu para ajudar na encenação. Lá fui eu e o outro sádico delinqüente armar a parada toda.
Quase que deu certo.
Na hora H, estávamos na sala batendo papo, Jerry vai lá e enfia a mão no pote de Bonzo. Os dois tarados com a respiração (e a gargalhada) em suspense. Nisso, o Heitor percebe e avisa ao Jerry, sob protestos e vaias dos dois mequetrefes. Jerry provou assim mesmo. E disse que não era ruim. Mas aí já não tinha mais graça.
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Nessas histórias, vocês perceberam que além do Jerry (que eu não revelo o verdadeiro nome de jeito nenhum) um outro cara estava em todas. O Heitor. Parceirão, grande camarada da gente.
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Nesta quarta-feira, fim de tarde, recebo um telefonema de uma das moças do nosso antigo grupo:
- E aí? Tudo bem?
- Tudo péssimo! – ela disse, chorosa – O Heitor se matou.
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...
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O cara estava há muito morando no Sul do país. Sem emprego, sem ânimo, em fase de separação no seu casamento, entrou em um quadro de depressão que ficava mais grave quando ele bebia. Há coisa de umas duas semanas, ele esteve aqui no Rio. Jerry e outros amigos saíram com ele. Eu não estava nessa.
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Aparentemente, ele parecia estar bem, falou de seus projetos e tudo o mais. Na hora de ir embora, ele se despediu de alguns com um abraço bem forte. Ficou abraçado longamente com uma amiga, falando ao ouvido dela. Disse ela que agora percebeu que ele estava dizendo adeus aos amigos.
Voltou para casa, e na noite de terça passada, esperou a esposa (ou melhor, ex-esposa) dormir, pegou o revólver que tinha comprado e deu um tiro na boca.
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No velório - em pleno Dia do Amigo, que ironia... - eu e alguns membros de nossa turma, todos atarantados com o sucedido. Eu lembrei de nossas discussões sobre futebol. Ele, vascaíno doente. Eu, apaixonado pelo Flamengo. Discutíamos, mas nunca brigamos.
Almoçávamos juntos quase todo dia durante um período. Como conversávamos! Principalmente sobre música. Foi ele quem me apresentou ao Dire Straits. E eu, de cara, fiquei alucinado por “Sultans of Swing”.
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A turma foi casando, os filhos nascendo, não dava mais para sairmos em bando como antigamente. O grupo se revia nos aniversários das crianças.
E de repente, estávamos ali. Num cemitério. As risadas de antes foram trocadas por sussurros à meia voz. Os bufões de tempos outros se transformavam em personagens de um Teatro de sombras, esboços pálidos de nós mesmos.
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Todas estas histórias que contei acima passaram ali pela minha cabeça e outras mais. Via a cara de tristeza de meus antigos camaradas, nossa!, a gente nunca conseguia ficar sério mais que três minutos e no entanto passamos horas ali, olhos baços, um soluço parado no ar...
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Levamos nosso amigo à sepultura e fomos nos afastando devagar, talvez esperando que tudo fosse mais uma das peças que pregávamos uns nos outros e de repente o Heitor surgisse ali, com aquele sorriso peculiar e dizendo: “Arrá! Peguei vocês!”
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Para honrar nossas antigas tradições, eu falei para meus amigos: “Foi muita sacanagem dele fazer isso na véspera de uma vitória do Mengão sobre o vasco. Acho que ele sabia que ia ser vice de novo e disse: “Prefiro morrer!”.
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Até a viúva riu.
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Puxa, Heitor, essa sua brincadeira não teve graça nenhuma. A gente vai sentir falta de você...
Que o amor de Deus te envolva e te traga a luz que você esqueceu em algum canto.
M.S.
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Na Rádio Antigas Ternuras, você está ouvindo Dire Straits com “Sultans of Swing”. Aí, Heitor, essa é pra você...