Dia desses, assisti a um filme memorável. Talvez o melhor que eu tenha visto neste ano, até agora. Chama-se Longe dela. Para me adequar mais ao tema deste blog, não faço mais resenhas completas dos filmes que assisto, portanto, não quero comentar ficha técnica, qualidade da obra etc. Mas trago este filme aqui neste blog temático para falar de um dos assuntos que ele trata: memória.
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O filme conta a história de Fiona Andersson, casada com Grant Andersson, e que é acometida de Mal de Alzheimer. Quando começa a perceber que a doença está avançando, ela pede para ser internada num asilo, apesar dos protestos de seu marido. Mas realmente, já estava ficando complicado. Ela saía de casa e não sabia mais voltar, ligava o gás e ia fazer outra coisa, enfim, aquelas coisas trágicas que costumam ocorrer com quem padece deste mal. Eu tive contato mais próximo com esta doença por intermédio da Dona Vanda Brandão, a última filha viva do Popularíssimo, que me ajudou tremendamente na elaboração do meu livro. Pouco depois de eu ter colocado ponto final na minha obra, ela começou a ter os primeiros sintomas. Logo depois, estava em estágio mais avançado, a ponto de seu filho ter que interná-la, pois, segundo me disse, “essa é uma doença que afeta toda a família”. E o filme mostra isso.
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Além de eu ter apreciado muitíssimo a obra cinematográfica em questão, o seu efeito catártico em mim foi instantâneo. Admito que ter este mal é um de meus maiores temores. Não tenho nenhum caso na família, mas não significa que eu esteja imune à doença. Ninguém está.
Vejam as características do Mal de Alzheimer:
Caracteriza-se clinicamente pela perda progressiva da memória. O cérebro de um paciente com a doença de Alzheimer, quando visto em necrópsia,, apresenta uma atrofia generalizada, com perda neuronal específica em certas áreas do hipocampo, mas também em regiões parieto-occipitais e frontais.
A perda de memória causa a estes pacientes um grande desconforto em sua fase inicial e intermediária, já na fase adiantada não apresentam mais condições de perceber-se doentes, por falha da auto-crítica. Não se trata de uma simples falha na memória, mas sim de uma progressiva incapacidade para o trabalho e convívio social, devido a dificuldades para reconhecer pessoas próximas e objetos. Mudanças de domicílio são mal recebidas, pois tornam os sintomas mais agudos. Um paciente com doença de Alzheimer pergunta a mesma coisa centenas de vezes, mostrando sua incapacidade de fixar algo novo. Palavras são esquecidas, frases são truncadas, muitas permanecendo sem finalização. (Fonte: Wikipédia)
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Saí do cinema refletindo sobre o que tinha assistido. Uma das coisa que me é tão prazerosa é puxar pela memória e lembrar de fatos do meu passado. Fatos agradáveis ou não, pois todos foram importantes na minha vida. Tenho tido muito prazer em dividir minhas recordações com vocês, aqui neste blog. É como se eu colocasse em palavras o fruto de minhas sinapses, traduzir em letras funções cerebrais relativas à memória. Certa vez, Umberto Eco disse que “a memória é a nossa identidade, nossa alma”. No filme, tem uma metáfora preciosa para o entendimento do que é este mal. A doutora explica que é parecido com disjuntores de uma casa que vão se desarmando e apagando a luz dos cômodos. Até que fica tudo escuro. Um paciente de Alzheimer pode chegar até a esquecer de andar, de comer e beber por conta própria. Vira uma espécie de planta, com funções vitais. Mas uma planta. Tudo o mais é apagado.
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Quando eu saí do cinema e estava caminhando, vi uma banca de camelô, que estava vendendo antigas traquitanas. Entre elas, estava um pequeno e velhíssimo gravador de fita de rolo. Fiquei a mirá-lo. Pensei em quantas vozes, quantos sons aquele aparelho registrou. Gente rindo, cantando, fazendo festa, fazendo confissões... Vai saber o que aquela fita já tinha registrado... O gravador já deve ter sido de extrema utilidade de quem o possuía. Agora estava ali, cercado por outras bugigangas obsoletas, talvez até sem funcionar. Exatamente como a personagem do filme. Ela teve uma vida intensa. Amou, foi amada, riu, chorou, vivenciou tantas coisas. E tudo foi apagado.
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Li recentemente numa revista “National Geographic” uma matéria sobre a Memória. Ali, falava de uma mulher de 41 anos, que se lembra de quase todos os dias de sua vida, a partir dos seus 11 anos. Na literatura médica, ela é conhecida como “AJ”. Diz essa mulher: “Minha memória passa como um filme: ininterrupta e incontrolável”. Se você pergunta a ela o que ela fazia às 12h34min, do dia 3 de agosto de 1986, ela responde de pronto: “era um domingo e um rapaz de quem eu gostava ligou para mim”. Cientistas a testaram e constataram que ela não erra uma.
Uma memória assim é uma bênção e uma maldição. Recordar prazerosamente os bons momentos que vivemos é uma delícia! Mas lembrar com detalhes do que nos foi desagradável é uma condenação tão grave como a do mitológico Prometeu, acorrentado no Cáucaso, com abutres vindo diariamente lhe comer o fígado, que se reconstituía sempre.
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A matéria também fala de um certo “EP”, um senhor de 85 anos, que só lembra de algo que tenha acontecido segundos antes. Segundo a matéria, um vírus da herpes devorou-lhe a parte do cérebro onde se localiza a memória. De acordo com a revista, ele é uma espécie de câmera de VHS, cuja cabeça de fita não funciona. “Ele vê, mas não grava”.
Ele não é um idiota, que vegeta em vida. A matéria diz que regularmente, um médico vai à sua casa e lhe aplica testes. Faz perguntas como: “em que continente fica o Brasil, quantas semanas têm o ano”. E ele sempre acerta. Vai sempre o mesmo médico e ele o recebe como se o visse pela primeira vez na vida. No seu pulso, há um bracelete de alerta médico escrito “perda de memória”. E ele nem lembra que tem este problema. A cada vez que ele olha para a pulseira, toma conhecimento de que sua memória é fraca.
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Ele gosta de ler jornais, mas pergunta a todo momento coisas como: “O que está acontecendo no Iraque?”, “quem é Bush?”. Tudo bem, esta última eu também gostaria de não lembrar... Mas ele começa lendo uma notícia, e na segunda linha já esqueceu da primeira.
Sua filha diz que ele é feliz o tempo todo. “Acho que é porque não sofre nenhuma tensão na vida”.
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Será que eu também seria feliz por não me lembrar do meu passado? Visto pelo que sou hoje, diria que não. Eu gosto de minhas recordações. Elas são minha identidade, minha alma, como disse o Eco. Mas é evidente que para quem teve os disjuntores apagados, não há sofrimento algum.
Minhas memórias não são vitais para o funcionamento do meu corpo. Mas são essenciais para que eu justifique a minha existência nesta vida. Eu sou minha carne, meus ossos, meus cabelos (que estão se apagando feito os tais disjuntores...), minhas unhas... Mas sou também o que fiz na vida, o que disse, o que eu escrevi, o que vivi... Amputar estas partes do meu ser me tornará alguém deficiente. Se eu chegar a este estágio, seria bom que o nosso Pai desligasse o último disjuntor.
Eu volto a falar sobre este assunto brevemente.
M.S.
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Na Rádio Antigas Ternuras, você ouve “Memories”, com Richard Clayderman.