
Dia desses, eu acordei na hora habitual, sentei-me na beira da cama, com a cara cheia de sono, e disse baixinho, para mim mesmo: “lá vamos nós para mais um dia...”. E fui cumprir meus rituais matinais – tomar banho, escovar os dentes, escolher a roupa para ir pro trabalho, preparar e comer o meu desjejum lendo o jornal que eu pego na porta do apartamento, pegar a chave do carro, a pasta, ir para o trabalho, estacionar no mesmo lugar, passar o crachá na catraca, maldizendo aquela bosta, entrar na sala, ligar o computador e meter a cara nas minhas tarefas cotidianas.
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Pois é. Já tive tantos rituais na minha vida... Qual seria o mais antigo que eu me lembre? Talvez acordar, escovar dos dentes com creme dental Kolynos, tomar uma xícara de Toddy com pão e margarina Claybon e ir para a escolinha da professora Hilda, onde estudei o pré-primário e o primeiro ano.
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No que parei para pensar, descobri que tive vários outros. Até para brincar eu tinha meus processos ritualísticos: para selecionar as bolinhas de gude que eu iria apostar no jogo à vera, para preparar o cerol e a pipa para soltar, para subir nas árvores do quintal e pular de um galho para o outro, que nem eu tinha visto o Tarzan fazer...
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Mas os rituais que eu mais gosto de lembrar são os que eu tinha ao tempo em que morava com minha tia, no bairro carioca da Piedade. Ela era bem velhinha. A filha dela, minha prima, tinha a idade de minha mãe. Muita gente pensava que ela era minha avó. Até mesmo os seus cuidados para comigo eram de avó para neto. Sintam só o drama:
Ela me acordava com uma xícara com Melhoral infantil diluído em água morna, com um tiquinho de mel de abelha. Era para não me “constipar”, como dizia. (Se eu tivesse mesmo gripado, ou melhor, “constipado”, ganhava também uma colherada de Rhum Creosotado). Depois, ela me dava uma xícara de café bem quente, com manteiga derretida. Para “expectorar”, como dizia. Mas antes de tudo, eu precisava lhe pedir a bênção, assim como ao meu tio. No café da manhã, tinha café, leite, pão, manteiga, queijo, frutas, bolo, torrada... Eu tinha que comer de tudo. Era para “deixar de ser tão magrinho”, como dizia. Se eu não quisesse comer, entrava em ação a ameaça do “Velho do Saco”, que pegava crianças que não comiam direito. Eu me borrava todo de medo do “Velho do Saco” e tratava de devorar tudo o que me ofereciam.
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Às seis horas da tarde, eu tinha que estar em casa para a “hora da Ave Maria”. Aí, ela acendia todas as luzes da casa, dizendo: “louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”.

Eu tinha que pedir a bênção aos mais velhos. Minha tia defumava a casa toda, ao som da voz de Júlio Louzada (nessa eu peguei pesado, heim? Quem é que lembra aí do Júlio Louzada no Rádio e a Hora da Ave Maria? Podem confessar! Ou só eu que sou velho aqui nessa joça?), com um copo d’água ao lado do Rádio. Nessa hora, nada de brincar, nada de ficar estirado na cama do meu tio, lendo o “Tesouro da Juventude” ou gibis do “Batman”. Era momento sagrado.
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Meus ritos. Minhas velhas liturgias cotidianas.
Hoje, acordo sozinho, sem Melhoral infantil, nem café com manteiga. Às seis horas são uma parte do dia como outra qualquer. Almoço com gosto, tendo que ficar regulando o que como para não engordar. Chego a raspar o prato. (O Velho do Saco ficaria orgulhoso de mim...).
Meus tios, Júlio Louzada e a Hora da Ave Maria já não existem mais, a não ser na memória do menino grande que olha para as árvores com vontade de voltar a brincar de Tarzan.
Acordo cedo e murmuro baixinho: “lá vamos nós para mais um dia”. E sigo construindo outros rituais cotidianos. Fazeres que um dia serão minhas antigas ternuras, partes integrantes de mim.
M.S.
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Na Rádio Antigas Ternuras, você ouve “Cotidiano”, do grande Chico Buarque.
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Na semana passada, eu já tinha postado texto novo quando descobri que o nobre Mario do Apoio Fraterno tinha me indicado para o selo “Blogs que fazem pensar”. Eu tinha lido lá que, pelas regras, eu deveria indicar cinco outros blogs que me fazem pensar. Como o meu texto já estava grande, resolvi que iria divulgar no seguinte a minha relação de blogs que me mexem com a minha cabeça. (Mas só cinco??? Vou escolher seis: três mocinhas e três mocinhos. Mas entrava mais gente na minha lista, podem acreditar...)
Abrindo as Janelas, da Saramar
Quase histórias de amor, da Lili
Transmimentos de pensação, da Claudinha
Lino Resende
Na ponta do lápis, do Rubo
Ramsés do Século XXI, do grande Do
Agora é com vocês, moçada. Copiem o selo para os seus respectivos blogs e indiquem os que lhes fazem pensar (e verão como é dureza escolher poucos entre muitos merecedores...)