
Está em cartaz o filme “Luta pela esperança” cujo nome original é bem mais sugestivo: “Cinderella Man” (EUA, 2005).
A direção é do competente Ron Howard, que esteve a frente de obras interessantes, como “Uma mente brilhante”, “Splash – Uma sereia em minha vida” e “Apolo 13”. Estrelando o filme, temos o bom ator Russell Crowe (como “James J. Braddock”), que infelizmente vem se tornando mais conhecido pelas confusões em que se mete fora das telas do que por suas atuações. Ele costuma se dedicar com afinco aos seus papéis. Neste, ele deslocou o ombro treinando boxe, além de outras contusões e um dente quebrado. Junto com ele, temos Renée Zellweger (como “Mae Braddock”, esposa de James), que já demonstrou sua competência em diversas obras cinematográficas. Paul Giamatti (o empresário “Joe Gould”) aparece como “o coadjuvante que rouba algumas cenas”, aliás, como já vem fazendo há algum tempo. E ainda a curiosidade de ter uma neta do Braddock real, Rosemerie DeWitt, como a vizinha “Sara Wilson”. O filme deve ter algumas indicações para o Oscar, uma vez que a Academia gosta de filmes como este, em que um “looser” dá a volta por cima. (Pessoalmente, não acredito que a Academia vá dar um Oscar seguido para filme com temática de boxe). Na verdade, os americanos deploram os “perdedores”, aqueles que não obtém sucesso na vida. Se Jesus Cristo fosse norte-americano e sua Paixão acontecesse pelas ruas do Brooklin, o cristianismo não existiria, ou vocês acreditam que um ianque sequer seguiria aquele judeu com uma cruz nas costas e renegado por seus pares? Mas quando o pobre diabo consegue reverter as expectativas e tornar-se um vencedor, aí eles aplaudem de pé. Podemos até dizer que eles cultuam personagens assim.
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Na tela vê-se a trajetória do lutador de boxe James J. Braddock (1905-1975) entre os anos de 1929 e 1935. Tem até livro – “Cinderella Man”, de Jeremy Schaap - sobre sua vida. Ele tinha alcançado o título dos meio-pesados em 1929, ganhou algum dinheiro, investiu em um negócio e perdeu tudo no Crack da Bolsa de New York. A partir dali, sua carreira de boxeador desceu pelo ralo e ele virou praticamente um indigente, com extrema dificuldade para alimentar e aquecer sua família (mulher e três filhos). Ganhava alguns trocados como estivador e teve que recorrer algumas vezes à humilhante fila do serviço social para levar algum dinheiro para casa. Eis que, subitamente, aparece a chance de sua vida: seu antigo empresário lhe arranja uma luta com um aspirante ao título que tinha ficado sem adversário. Era a chance da “Gata Borralheira” virar “Cinderela”, embora ninguém, nem ele mesmo acreditasse nisso. Acontece que a sua “fada madrinha” estava de plantão naqueles dias. Não só ele venceu Corn Griffin, como também o seguinte John Henry Lewis , candidatando-se para enfrentar o temível campeão dos pesos pesados Max Baer (1909-1959), que já tinha mandado dois adversários para o cemitério com seus socos – ele é considerado a “direita mais potente da história do boxe mundial”. (Veja abaixo fotos dos autênticos Braddock e Baer – este rasgando uma lista telefônica)
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“Mais um filme de boxe”, diriam alguns. E é verdade. Para quem viu “Touro indomável”, “Rocky, um lutador”, “Talhado para campeão” e tantos outros, qual a diferença deste? Cinematograficamente falando, não se tem nenhuma novidade. É muito bem feito, bem representado, e mesmo eu, que detesto boxe, me peguei me mexendo, acompanhando os golpes na tela, movimentando meus braços. Mas... É apenas mais um filme de boxe. No entanto, houve algo que me chamou a atenção e me levou a escrever este texto.
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James J. Braddock saiu da fila do pão para o tablado do Madison Square Garden, com praticamente toda New York e New Jersey torcendo por ele. Aquele bando de miseráveis, tornados assim pela crise do capitalismo que varreu milhares de empregos e transformou em pó as vidas de inúmeras pessoas, via em Braddock o seu redentor.
Bertolt Brecht disse: “coitado do povo que precisa de heróis”, mas aquelas pessoas precisavam de um para se espelhar, sob pena talvez de enlouquecerem. Braddock no ringue, lutando pela sua sobrevivência, era a catarse de todos que tentavam sair dos buracos infectos onde moravam (fizeram um favelão no Central Park!!) e dar uma vida melhor aos filhos. Ninguém queria estar no lugar dele. Eles se contentavam em torcer por ele. A vitória de Braddock seria também a vitória daquele lumpesinato.
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E foi isto que me chamou a atenção: a catarse aristotélica naquela gente. Só de ver um deles vencendo já os aliviava. Hoje ver apenas não basta. Somente o alívio por testemunhar o outro purgar os desejos e aspirações da massa anônima não é suficiente. Com a extrema valorização da imagem que os meios de comunicação proporcionam, todos querem o seu quinhão de exposição. É como se dissessem: “Se aquele pode, eu também posso, mesmo não tendo o talento que o faz especial, aliás, será mesmo que ele tem talento?”
E as razões que movem esta imensa massa de anônimos aspirantes à exposição não se dá só por conta de razões econômicas. O rico anônimo também quer aparecer, brilhar.
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“Contos de fada não existem. Nenhuma ‘fada madrinha’ virá tirar ninguém do borralho para fazer brilhar na corte em sapatos de cristal. Sem talento, ninguém se estabelece, pelo menos não por muito tempo”. É o que dizem para desestimular os mais afoitos. Será mesmo? Serão somente os 15 minutos da profecia de Andy Warwhol? Ou ainda: vale a pena esta luta encarniçada para chegar aos tais 15 minutos? São indagações que eu me faço e, na verdade, não consigo resposta. Olho na televisão, olho nos palcos, olho na vida política... É tanta gente que devia estar anônima, torcendo por quem tem o dom especial de catalisar os desprovidos...
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É como se todos quisessem ser as Cinderelas, nem que por alguns instantes, esquecidos de que para acontecer a história é necessário ter platéia. Ver o show é ser também parte do show. Mas como explicar isto para quem acha que se não estiver no palco é porque não existe? Mario Quintana (ave, mestre!) escreveu certa vez que as pessoas “esqueceram de tentar ser felizes de uma forma mais realista”. E que “ser feliz de uma forma realista é fazer o possível e aceitar o improvável”.
Admito ser difícil pensar assim quando o mundo a sua volta está tentando te convencer que ser feliz é almejar e conseguir o fútil, o passageiro. Entretanto, como Quintana mesmo disse, “a felicidade é um sentimento simples, você pode encontrá-la e deixá-la ir embora por não perceber sua simplicidade”.
M.S.