
Só a frase: "o personagem não pertence ao ator; o ator é que pertence ao personagem", já me faria aplaudir o excelente filme "A bela do palco" ("Stage beauty", EUA/Alemanha/Inglaterra, 2004), em cartaz na rede Estação. Entretanto, o filme é bem mais do que esta frase.
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Baseado em um ator que realmente existiu, Edward "Ned" Kynaston (1640-1706), provavelmente o último e certamente o melhor a representar papéis femininos ao tempo em mulheres não podiam atuar em Teatro [veja foto dele à direita]

Pois no Século 17, onde pontificava na Inglaterra o rei Charles II, a nobreza ia ao Teatro e ainda patrocinava peças, vejam vocês! Aliás, no filme o próprio rei também dá uma de ator e se veste de mulher para jogos teatrais em seu palácio (veja a foto abaixo)

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Em rápidas linhas, eis o argumento: Ned Kynaston (Billy Crudup, que esteve recentemente no admirável "Peixe grande e suas histórias maravilhosas", de Tim Burton) está no auge de sua carreira de ator, famoso e incensado por seu desempenho nos papéis femininos das peças de Shakespeare. Eis que sua camareira, Maria (a bela e talentosa Claire Danes, "mocinha" de "Exterminador do Futuro III"), pretende se tornar atriz, apesar da proibição de mulheres atuarem. Para isto, ela o observa em cena, adquirindo inclusive seus maneirismos. Por intervenção de uma outra aspirante aos palcos, Nell Gwinn (Zoe Tapper) [veja a foto da atriz original, que realmente existiu]

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Crudup transmite perfeitamente a personalidade dupla do protagonista, incluindo sua arrogância, sua afetação e toda a dubiedade de seu comportamento amoroso/sexual. É curioso observar que na primeira parte do filme, quando ele atua em travesti, as cenas no palco tenham aspecto farsesco, absolutamente risível. A gente chega a se perguntar se era assim mesmo que se representava ao tempo de Shakespeare e na fase imediatamente posterior a ele, que é o tempo do filme. No entanto, vemos a cena final de "Othelo" ganhar uma dimensão e uma força de fazer a platéia (do filme e da peça) perder o fôlego. Nunca vi, em toda a minha vida, uma cena final deste clássico shakespeariano representada com tanto arrebatamento e impacto emocional como a mostrada no filme.

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Nas reconstituições de época, os ingleses costumam ser imbatíveis e neste "A bela do palco" continuam dando o show habitual. Cenários e figurinos são perfeitos, a direção de arte é capaz de fazer pirar carnavalesco de escola de samba, os diálogos são magistralmente escritos, a fotografia é belíssima.

No elenco, todos estão ótimos: além dos citados, podemos incluir o sempre correto Edward Fox e a luxuosa coadjuvância de Ben Chaplin, Hugh Bonneville e Richard Griffiths. Os demais, com pequenas participações, também se saem muito bem. A direção de Richard Eyre é perfeita, conseguindo retirar dos atores o melhor de cada um e criando belas molduras para a história que está sendo narrada.
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Se você acha que este filme faz lembrar "Shakespeare Apaixonado" está redondamente enganado. Ambos são tão semelhantes quanto uma taça de Château Lafite-Rothschild e um copo de Cantina de São Roque. Alias, depois de ver o desempenho de Claire Danes, a gente fica imaginando como a Gwineth Paltrow pôde vencer a Fernanda Montenegro no Oscar...
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Para mim que também sou ator, um filme como este dá um nó na cabeça, especialmente nos momentos em que Kyneston começa a se questionar sobre a importância de atuar, ou nos seus esforços em melhorar sempre, ou ainda nas dúvidas que assediam o personagem Maria... Há uma complexa (para nós, atores) discussão sobre arte e vida que não há como não instigar quem já entrou num palco para representar.
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Por fim, fica a deliciosa frase que o rei Charles II disse no camarim para os atores, depois de ter visto a peça: "vocês falam em tragédias e mortes, mas depois vamos sair para jantar".
Cai o pano.
M.S.
3 comentários:
Excelente análise, Marco. Parece ser um filme primoroso. Pena que estes filmes ficam restritos a um circuito muito pequeno e alternativo de cinemas. Para quem mora na baixada, como eu, fica difícil se locomover sempre para assistir esses filmes.
Na maioria das vezes, tenho que aguardar o lançamento em DVD!
Concordo com meu sócio no elogio à resenha e na impressão acerca deste filme. Fiquei curioso para assistir. No meu caso, não é problema algum me deslocar para o Estação. Ao contrário, é sempre um prazer ir a Botafogo. Assim como é sempre um prazer visitar o Antigas Ternuras. Pena que ultimamente esteja difícil fazer ambas as coisas com a freqüência que gostaria... Um grande abraço!
Evandro: Ë pena só passarem blockbusters por aí. Acho que os programadores imaginam que não haja "vida inteligente" nas periferias dos grande centros urbanos. Bom, de qualquer maneira, você ainda tem a opção do DVD.
Paulo, meu personal teacher de template: Não deixe de ver este filme. Como cinéfilo e como professor de História. Compreendo que você esteja assoberbado. Tão logo passe o sufoco, você volta a frequentar os cinemas, o Antigas Ternuras e retoma o nosso curso.
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