
Já faz tempo que eu não escrevo sobre a origem de expressões cotidianas e bem sei que esta é uma das seções que mais agradam aos leitores deste humilde blog. Pois bem. Lá vamos nós para mais um explicação sobre uma expressão de uso corrente. E desta vez escolhi uma das mais conhecidas. Mas antes, deixem eu contar uma historinha:
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No início dos anos 80, uma mocinha autêntica representante do grupo WASP (sigla em inglês que se refere aos norte-americanos brancos, anglo-saxões e protestantes) passou para a Universidade de Princeton, no estado de New Jersey. Toda feliz, ela se dirigiu à secretaria da universidade para saber em que quarto ela ficaria no dormitório de lá (vocês já devem ter visto em filmes que os universitários moram no campus da universidade). Ainda toda alegrinha, foi correndo para o quarto que lhe foi designado para conhecer sua colega, com quem dividiria o aposento. Chegando lá, encontrou uma moça negra. Aí, pensou ela: “epa! Tem alguma coisa errada aqui...”. Voltou para a secretaria para reclamar que tinha uma estudante “de cor” no quarto dela. Devia haver um engano. Na secretaria, disseram que não havia engano algum. Aquela afrodescendente era a sua companheira de quarto.
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A moça protestou. Como eles ousavam colocar uma negra dormindo no mesmo quarto que ela! Que tratassem de mudá-la. Ou ela ou a outra, para um outro quarto. A pessoa da secretaria disse que não mudaria nada, que ela tratasse de aceitar a companheira e não enchesse o saco. A mocinha wasp disse que aquilo não ficaria assim, que a família dela tinha prestígio na universidade, que eles iriam obrigá-los a mudar aquela moça do quarto dela etc. e tal.
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Pois bem. A branquela tanto fez que conseguiu remover a moça negra do quarto dela. Foi com um sorrisinho cínico de vitória que ela viu a tal moça arrumar as suas coisas e deixar o aposento. Ela deve ter pensado: “imagine se eu vou dividir o meu quarto com essa tal de Michelle Robinson”...
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Eis que o tempo passa e aquela Michelle Robinson se casou com um advogado de carreira promissora, que entrou para a política se elegendo senador pelo estado de Illinois.

Passou mais um tempinho e aquele advogado e senador se elege presidente dos Estados Unidos da América e sua esposa, Michelle Obama, vira referência de elegância, inteligência e cultura como a primeira primeira-dama negra da história do país.
Quanto àquela branquela preconceituosa... Pois é. A história sequer registrou o seu nome. Se ela tivesse se tornado amiga da companheira de quarto, que ela acabou escorraçando, hoje estaria bem na fita, talvez se tornando íntima do círculo de amigos do casal em maior evidência no mundo. Imagino que ela deva estar imensamente arrependida do erro que cometeu...
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Tomei conhecimento desta história na coluna do jornalista Élio Gáspari, de quem sou confesso admirador. E quando acabei de ler, pensei: “se arrependimento matasse...” Com toda a certeza, o preconceito imbecil da moça fê-la incorrer num erro gigantesco. “Ela não podia imaginar”, diria um idiota da objetividade, expressão cunhada por Nelson Rodrigues. Pois é. “Errar é humano”, diria outro alguém.
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Escolhi então esta última expressão para dar aqui a sua origem. Sabem de onde veio? Ela é atribuída a Lucius Aneus Sêneca, considerado um dos romanos mais sábios de todos os tempos (os outros seriam Cícero e Marco Aurelio). Político, dramaturgo, filósofo na linha do estoicismo (que prega a indiferença a tudo o que é externo ao ser), Sêneca viveu de 4a.C. a 65 d.C. e até andou trocando cartas com Paulo de Tarso (o São Paulo Apóstolo dos Gentios).
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Além da frase “errar é humano” ele disse outras tão interessantes quanto. O homem era um frasista dos bons. Se ele cometeu erros em sua vida pra dizer aquilo? Só para vocês terem uma idéia: ele andou escrevendo algumas coisas que irritaram o imperador Calígula. Este o condenou a morte, mas foi convencido a poupá-lo. O imperador seguinte, Claudio, o mandou desterrado para a Córsega, sob a acusação de ter mostrado e usado o seu dardo de Eros na sobrinha do manda-chuva. (Huumm... Vai ver o homem não era tão estóico assim...) Como quem fez a acusação foi a esposa do imperador, uma tal de Messalina, que não era, digamos um exemplo de virtude (um dia ainda escrevo sobre essa imperatriz galinácea), ele acabou perdoado e, por insistência da segunda esposa do imperador, Agripina, ele foi indicado para ser o preceptor de Nero. E ele fez o que pôde com esse rapaz. Inclusive quando o maluquete virou imperador, Sêneca passou a ser seu principal conselheiro. Ele fez de tudo para colocar o rapaz nos eixos. Mas...
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Sêneca vendo que aquele ali não tinha jeito, pediu para se retirar da vida pública. Pretendia ficar quieto em seu canto até que as Parcas lhe cortassem o fio da vida. Mas palacianos lhe intrigaram com o imperador, dizendo que ele estava liderando um plano para matá-lo. Nero, que era doido de juntar cachorro em volta, acreditou e condenou à morte seu antigo professor e conselheiro, juntamente com sua esposa (ela acabou poupada). Alguns dizem que a condenação era cortar os pulsos. Outros, que era para ele cortar uma veia do pé e sangrar até a morte. Ele entrou numa bacia (vide gravura), cortou a veia e via o sangue sair. Como demorava muito e estava lhe causando muitas dores, pediu para colocar água quente na bacia para apressar a execução. Naquele momento, ele deve ter pensado em tudo o que ensinara para Nero, talvez se perguntando onde tinha errado na educação daquele facínora. Provavelmente ele disse a famosa frase: “errare humanum est”, nesse momento.
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Mas poderia ter dito outras de suas famosas tiradas, como: "Ninguém se preocupa em ter uma vida virtuosa, mas apenas com quanto tempo poderá viver. Todos podem viver bem, ninguém tem o poder de viver muito" ou “Quem se arrepende de ter errado é quase inocente” ou ainda "Não te interesses sobre a quantidade, mas sim sobre a qualidade dos vossos amigos."
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Tanto Sêneca quanto a tal colega de quarto de Michelle Obama fizeram más escolhas. E a gente sabe que escolher mal acarreta em ter que fazer outras escolhas. A sabedoria popular complementou a frase célebre do filósofo: “Errar é humano... mas persistir no erro é burrice”. Ele não teve tempo de se corrigir. A tal moça, espero que sim. Assim como cada um de nós, diante de nossos muitos erros cometidos. A possibilidade de erro está em nossa natureza. A sabedoria de aprender com ele, é uma conquista diária.
M.S.
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Na Rádio Antigas Ternuras, você ouve “Meu Erro”, cantada pela minha deusa da voz, Zizi Possi e por Herbert Vianna.