Estão vendo este gravador da foto? Pois é. Era o meu MP3 em mil-novecentos-e-não vem-ao-caso.
Houve uma época, no tempo em que Noé era cadete da Marinha e nem sonhava em fazer navio e se meter com Zoologia, que todo rapaz queria ter um gravador de fita cassete para registrar suas músicas preferidas.
A marca do meu era Sanyo.
*

Eu ainda tenho todas as fitas que gravei naquela época. Provavelmente nem tocam mais. Para gravá-las sem usar microfone (o som seria horrível) a gente tinha que comprar um fio com plug Phillips numa ponta e de um pino na outra. Isso para gravar do toca-discos (ou vitrola, como chamávamos na época). Ou fazer um fio com pino do tipo “macho-fêmea” nas duas pontas, para a gente filar músicas no aparelho de rádio.
Eu fazia uma seleção de músicas entre os meus discos de vinil e pedia emprestado os discos de amigos. O meu principal fornecedor era o Alcir, meu Obi wan Kenobi em termos musicais. Ele ajudou a forjar o meu gosto musical na época.
Sei que falando essas coisas como gravador cassete, disco de vinil, plug Phillips, pareço estar descrevendo objetos possivelmente encontrados na tumba do faraó Tutancamon. Ué... Fazer o quê? Sou desse tempo...
*

Ah, eu me lembro bem das músicas de minha preferência! Na verdade, eu era um boboca colonizado, só me interessava pela cultura norte-americana, vivia falando inglês, desprezando totalmente a cultura brasileira. Ainda bem que os jovens de hoje não são assim, não é mesmo?
De qualquer forma, ouvindo as músicas que eu curtia na época, comparando com as que tocam hoje no rádio... Valha-me Deus!... Eu tinha um gosto refinadíssimo!
*
Vejam só a relação de músicas de uma de minhas fitas daquele tempo (quem quiser ouvi-las é só clicar em cima do título, mas antes clique no “X” lá na barra de ferramentas para interromper a música que está tocando agora):
Ma Chèrrie amour, com Stevie Wonder.
Don’t mess with Mr. T, com Marvin Gaye.
So far away, com Carole King.
Bridge Over Troubled Waters, com Simon & Garfunkel.
If, com Bread.
Summer Hollyday, com Terry Winter.
Why can’t we live together, com Timmy Thomas.
Killing me softly with his songs, com Aretha Franklin.
Got to be there, com Michael Jackson.
Clair, com Gilbert O’Sullivan
Neither one of us, com Gladys Knight and The Pips
*

E aí? Que tal? Só clássicos, heim?
Eu andava com o meu gravador pra cima e pra baixo. Gastava boa parte da minha mesada em pilhas para o bicho. Se fosse ao banheiro para tomar banho ou fazer o “número 2” (ou como diríamos na minha época: “passar um telegrama”, “ligar a chocolateira”, “botar o moreno pra nadar”, “esculpir uma cerâmica”, “esvaziar a mente”...) levava o gravador; se minha mãe me mandasse ao mercado, ou à padaria, lá ia eu com ele na mão; se fosse ao campo para jogar futebol, chegava cedo e ficava ouvindo música no Sanyo enquanto a moçada não chegava. Ou seja, meu gravador era um apêndice de mim. Era o meu mundo, o meu planeta particular.
*

Um dos programas habituais que eu mais apreciava com o gravador era ir para a casa do meu amiguirmão Luiz e ficarmos ouvindo música até meia-noite, saindo de lá com a minha bicicleta sob a preocupação da saudosíssima D. Aída, mãe dele, que, como todas as mães, ficava preocupada com adolescente andando à noite. Só que naquela época isso era possível. Não acontecia nada.
Quando eu descobria alguma música nova, gravava e levava para ouvir junto com o Luiz. Curiosamente, hoje, trocentos anos depois, ainda vou pra casa dele com DVD de show para a gente ver junto (aliás, tô com saudades desse moleque!).
*

Meu gravador era meu confidente nos desencontros de amor. Estão ouvindo esta música que está tocando na Rádio Antigas Ternuras? Pois é. Já curti dor de cotovelo ao som dela, porque uma menina não quis me namorar. Lembro que uma outra paixão recolhida me fez ouvir Fire and Rain, do James Taylor durante horas. Eu até lembro da menina por quem eu era apaixonado nessa época. Depois nos tornamos amigos, ela vive há muitos anos nos Estados Unidos com o marido.
Ah, ouvir músicas no meu velho Sanyo ajudava a fazer o rescaldo em meu coração abrasado. Tem gente que afoga as mágoas em birita. Eu afogava as minhas em notas musicais. Pelo menos meu fígado saía intacto!
*

Este post fica como uma homenagem a este velho amigo que reencontrei noutro dia, quando estava procurando algumas velharias nos meus guardados. Nem tentei fazê-lo funcionar. Provavelmente seu motor já deve ter ido para o céu dos mecanismos eletrônicos. Melhor deixá-lo no seu repouso. De forma alguma eu me desfaço dele! Boa parte de minhas antigas ternuras passaram por seus botões e alavanca de controle.
Se minha alma pudesse ser fragmentada, um pedaço estaria guardado junto a velhas fitas cassete e um gravador de pilha.
M.S.
***********************************************
Na Rádio Antigas Ternuras, você ouve “Think of me as your soldier”, de e com Stevie Wonder. Quem já dançou esta música coladinho com uma pequena, pode falar, como Pablo Neruda, “Confesso que vivi”. E como ele também dizer “nas alturas arderá de novo/ o meu coração ardente e estrelado”.