
Sabe aquele dia em que a gente se sente explorado, com um chefe que parece o tocador de tambor do navio do Ben-Hur, fazendo a marcação e ditando o ritmo, gritando: “remem! remem!”? E a gente se sente infeliz, achando que ninguém no mundo sofre como nós, não é? E quando a gente diz: “hoje, trabalhei feito um escravo!”?
Acreditem. Estamos reclamando de barriga cheia. No tempo dos escravos mesmo, os de verdade, o couro comia literalmente. A coisa era preta. E dura. Com trocadilho.
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Querem conhecer um exemplo? Afivelem o cinto, meninos e meninas, que o trem da História vai acelerar. Está na hora de mais uma seção: “A História tem cada história!”
Hoje falaremos da vida dos negros escravos, no Século XVIII, em pleno ciclo do ouro, na capitania das Minas Geraes (se escrevia assim).
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A exploração de ouro na época poderia se dar de duas formas: pela procura com batéia - aquela espécie de bacia de metal - na beira dos rios, onde o ouro aparecia em pepitas, ou cavoucando os intestinos da terra, a procura de veios em túneis e cavernas. Da primeira forma, não vamos falar, pois é por demais conhecida. É na segunda forma que descobri novidades interessantes.
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Nas minhas férias deste ano, quando fui correr as cidades históricas mineiras, estive em Vila Rica, quer dizer, em Ouro Preto, onde um guia me levou para conhecer uma antiga mina do Século XVIII, a Santa Rita. Lá, conheci um outro guia sensacional, chamado Jefferson.

Um sujeito super-mega simpático, vestido com a camisa do Internacional, embora fosse torcedor do Atlético Mineiro, e que adorava ficar sacaneando o meu Mengão, mesmo quando eu ameaçava colocá-lo no tronco e arrancar seus bagos com um alicate de unha cego. Mas como sabia de História o Jefferson! Como também gosto de História (não sei se vocês já perceberam...), fizemos instantânea camaradagem, trocando várias informações. Um cara 1000% o Jefferson!
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Mas vamos às coisas que ele contou, misturadas com algumas que eu já sabia.
Já me chamou a atenção o fato daquele buracão não ter vigas escorando, que nem a gente vê nas minas de filme faroeste americano. Ele me disse que os túneis eram escavados por chineses de Macau ou de Goa (colônias portuguesas na Ásia), que conheciam a tecnologia necessária para abrir o buraco de forma que ele não desabasse, mesmo tendo vários metros.

E o interessante é que a forma do túnel favorecia pessoas baixas, como os chineses, com paredes laterais abauladas, levemente curvas, justas para pessoas passarem com baldes nas mãos. (parêntesis: fui em várias igrejas em Ouro Preto, Sabará, Mariana...em que há painéis com cenas chinesas! E até anjinhos com olhinhos puxados. A igreja de Nossa Senhora do Ó, de Sabará, parece um templo de kung-fu, cheia de dragões, com painéis pintados em vermelho e dourado...Tinha chinês para dedéu na antiga Minas Gerais!)
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Outra curiosidade, segundo o Jefferson me contou: os famosos negros minas tinham este nome por já trabalharem na busca de ouro nas minas da África do Sul e arredores. Era importados pelos portugueses para o trabalho desse lado do Atlântico. Bem, eu tinha a informação que os negros mina vinham da feitoria de São Jorge da Mina, no atual Gana, capturados no Togo, no Benin e na Nigéria. Mas deixa o Jefferson falar.

Os escravos destinados à reprodução eram diametralmente diferentes dos famosos “mandingos” (negros da tribo
Mandika, da África Ocidental, conhecidos por serem altos e fortes. Nada a ver com o atual ator de filme pornô, que se apelidou de “Mandingo”, e que tem 36cm de pemba), altamente valorizados no período escravocrata norte-americano como reprodutores. Para trabalhar nas minas, o ideal era negros baixos, atarracados, de pernas arqueadas, que nem caubói que anda nos filmes naquela pose “roubaram meu cavalo”, sabe como é? Estes eram os reprodutores valorizados para gerarem novos negros que fossem trabalhar nas minas. Se um negro, ficasse grande demais, se tivesse um físico de Mike Tyson, sabem o que acontecia com ele? O seu dono pegava duas pedras, colocava os penduricalhos do rapaz em uma delas e...CRASH!... Batia uma pedra na outra. Com os bagos do sujeito entre elas. Sim, amigos. Os caras castravam os negros altos e fortes. Por que? Ora, para reduzir a agressividade e principalmente para eles não se reproduzirem, gerando outros negros altos e fortes, que não seriam de serventia para o trabalho nas minas.
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Enquanto os rapazes que estão lendo isso fazem cara de dor e automaticamente colocam as mãos nas jóias da família, vamos seguir adiante. Logo no início do túnel, havia um buraco na parede da mina. O nome deste buraco era “bucho”. Ali, deveria ser depositado todo o ouro apurado na escavação. Tinha um escravo que, de tempos em tempos, ia até o
bucho, retirava o conteúdo e levava para o feitor ver e encaminhar para pesagem. Ai dos escravos cavoucadores se o
bucho não estivesse cheio! Primeiro, tomavam uma coça. Depois ficavam sem comida. E terceiro, ficavam proibidos de sair do túnel até encherem o
bucho, mesmo se estivessem com o próprio bucho vazio, sem comida. Talvez vocês já tenham ouvido a expressão: “encheu o bucho de dinheiro”. Pois é. Vem deste tempo. Se bem que hoje, dizem: “encheu o rabo de dinheiro”. Bem, cada um enche o que quiser e ninguém tem nada com isso, não é mesmo?...
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As crianças negras trabalhavam nas minas. Por conta de seu tamanho e agilidade, eles eram fundamentais naquela exploração. Já as mulheres não podiam nem botar a cabecinha na entrada do túnel. Diziam que dava azar e poderia haver desgraça.
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Dentro da mina que visitei, até hoje ainda é possível encontrar poeiras na cor vermelho-ocre, cinza-prata e dourada. Especialmente esta última, era muito usada para revestir altares e imagens. Parece ouro, mas não é... Tem muita igreja que se diz coberta de ouro, mas que na verdade, está coberta de pigmento dourado.
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A expectativa de vida para estes escravos era de uns cinco, dez anos de trabalho, no máximo. Os coitados ficavam sem ver a luz do sol, trabalhando no escuro, sob a luz de lampiões, recebendo poeira na cara, respirando e encharcando os pulmões de pó de sílica e outros resíduos.
Muitos morriam dentro do próprio túnel. Não são poucas as histórias de assombração envolvendo estas minas, hoje abandonadas. Na que eu visitei, por exemplo, dizem que tem um baita negão que aparece de vez em quando, apavorando a galera. Tem gente que diz já ter sentido um bafo no cangote, mãos frias segurando os ombros e unhas dos pés arranhando os calcanhares. Quer dizer, além de fantasmagórico o bicho é tarado! Vou logo avisando: eu não vi nada, nem senti nada! Não teve fantasma quando lá estive!
Aliás, antes do Jefferson contar esta história, ele quis que eu entrasse numa das galerias da mina, e, para que eu percebesse como era o trabalho naquela época, ele pediu para apagar a luz dos túneis. Caraco! Fiquei sozinho naquele escuraço! Ai, que mêda! Se ele tivesse me falado do tal negão poltergeist eu nem tinha topado ficar no escuro!
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Em Vila Rica havia muitas destas minas. Mesmo depois que o ciclo do ouro se esgotou, os túneis ficaram lá, como testemunhas de uma era de espoliação e exploração. Hoje quase não tem mais daqueles túneis. Sabem o por quê? Acontece que havia passagens entre as minas e as casas dos senhores. Em tempos modernos, os maridos saíam para o trabalho e deixavam as esposas em casa, cuidando do lar. Algumas se sentiam solitárias e acabavam aceitando a corte de algum “Ricardão”. Pois é. Estavam os dois lá, no bem bão, quando o marido apontava na entrada do quintal. A cena clássica: “Ih! Meu marido!”; “Raios! E agora? O que é que eu faço?” “Foge pelo túnel da mina. Tem um alçapão aqui.”
Quando o marido descobria que a mulher entregava a pepita para outro mineiro, no maior assanhamento, fechava o buraco. O da mina, quero dizer.
Com isso, muitos túneis originados do Século XVIII, que poderiam servir de estudos e pesquisas históricas, foram soterrados para evitar que continuasse a “dar ladrão” em casa.
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Mas o que sobrou, dá para a gente ver como era sacrificada a vida dos escravos naquela época.
Pois é, meus caros. Da próxima vez que vocês reclamarem da vida, de seus patrões, de seus chefes, lembrem-se dos pobres negros mineiros, no Século XVIII. Dizer que trabalha que nem um “escravo”, numa mesa, perto da janela, com ar condicionado e água gelada é mole. Se você que me lê, tivesse nascido com um pouco mais de melanina na pele, e fosse trazido da África, saberia o que é dar duro. Sem trocadilho.
M.S.
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Na Rádio Antigas Ternuras, você ouve o tema de abertura da novela “Escrava Isaura”. Lerêêêêê...Lerê...