
Prosseguindo a partir do post anterior sobre os hábitos de asseio das populações passadas. Mais um episódio da séria série “A História tem cada história”.
Bem... No capítulo anterior, falávamos do banho e da fase final de toda obra-prima culinária. Prosseguiremos falando da falta de saneamento e suas conseqüências para os habitantes do Rio Antigo.
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Em 1853, o então presidente da Junta, o médico Francisco de Paula Cândido, elaborou o Relatório sobre a salubridade da cidade do Rio de Janeiro em geral e a febre amarela em particular para subir à Augusta Presença de S. M. o Imperador, onde fez reflexões curiosas e interessantes a respeito da Higiene Pública da capital do país. Uma delas: “O clima, isto é, o ar respirado pelos habitantes do Rio de Janeiro tem sofrido notável modificação com o crescimento da população e com as mudanças que a civilização tem operado em seus costumes”.
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Arrá! Então a falta de educação das pessoas, os maus cidadãos que emporcalham a cidade vêm de longe? Pois é.
E o tal cientista listou alguns fatores que, na opinião dele, junto com a falta de higiene, influíam na duração média da vida das pessoas de sua época: “a emigração, o aumento da reprodução, acompanhando algumas vezes o aumento da mortalidade, a idade das paixões, onde mais se morre, afluindo para as cidades, a vida efeminada e indolente da classe abastada, a idade provecta de alguns que pode ser mais que contrabalançada pela maior mortalidade da infância (...)”. Não deixa de causar um certo espanto o comentário sobre hábitos... huum... pouco ortodoxos da “classe abastada”, especialmente por se tratar do ano de 1853, e em um relatório dirigido ao Imperador. Mas prefiro “pular essa parte”... Voltemos à porcaria.
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O Dr. Francisco de Paula fez um cálculo curioso sobre a quantidade de dejetos que eram produzidos diariamente na cidade. Segundo ele, tomando-se por base que cada homem bota pra fora, em média, 165 gramas em fezes por dia (eu sei que tem muito cagão que faz bem mais do que isso, mas, na média, dá aproximadamente esse peso, você sabia? Experimenta arriar o barro numa balança procê ver...), isto multiplicado pela população da época estimada em 266 mil habitantes perfariam 311.220 arrobas de matérias sólidas (ou seja, cocô) a se transformarem em gases, que seriam fatalmente inalados pelas pessoas. Para animais, a estimativa dava conta de 155.610 arrobas a se volatizarem in natura diariamente.
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Perceberam? Sentiram o cheiro da bosta? Hoje, reclamamos do gás carbônico dos carros. Na época, eles reclamavam do “gás carbônico” das pessoas e dos cavalos e outros animais que zanzavam pela cidade. Ou seja: da cocozada que ficava pelo chão, ao alcance de olhos e principalmente das narinas do povo...
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Não é à toa que a Carlota Joaquina vivia reclamando com o Príncipe Regente D. João que essa cidade fedia a merda...
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E, olha... Atualmente, isso não mudou muito, não. Vivemos num chiqueiro chique. Lembro que nos anos 90 eu estava ensaiando uma peça com o saudoso diretor Marcio Vianna. Ele pretendia fazer um espetáculo sobre cegos e queria que atores e público sentissem o desconforto de não enxergar. Nos ensaios, ele fez o seguinte exercício com a gente: dividiu os atores em duplas e cada um tinha que fechar os olhos e ser conduzido pelo outro pela cidade. Depois trocava. Quando fui o “cego”, caraco!, fiquei achando que a minha colega tivesse me levado para o canal do Mangue. No que a gente fica sem um sentido, os demais se aguçam. E eu, sem visão, tive meu olfato mais apurado. (Eca! Eca! Eca!) Porém, o mais engraçado é que ela me levou para andar nas ruas do centro e depois da Zona Sul da cidade! Áreas nobres! E o cheiro de bosta, mijo e lixo que impregnava meu nariz continua por aí mesmo hoje em dia. Só que nos acostumamos com ele...(Argh!)
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Por tudo isso, pelos maus hábitos de higiene da população, o Rio foi, durante os Séculos 18 e 19, a capital da pestilência nas Américas. Cólera, tifo, peste bubônica matavam pessoas como a gente mata mosquito. Querem mais um exemplo da nojeira? Olha só.
Naquela época, o tratamento mais recomendado para todo tipo de doença era a sangria. Achavam que se a pessoa botasse o sangue ruim pra fora, ficaria curada de suas mazelas. Daí, recomendava-se sangria pra tudo: Dor de cabeça? Sangria. Diarréia? Sangria. Torcicolo no pescoço? Sangria. Calvície? Sangria. O homem ficou broxa? Sangria. E nisso, quem receitava e aplicava esse “tratamento” eram os barbeiros, que na época, não cortavam só barba e cabelo, eram também uma espécie de médicos populares. Havia uma concentração deles no Beco dos Barbeiros (que existe até hoje, na Praça 15, ao lado da Igreja do Carmo). Os doentes chegavam lá, sentavam na cadeira e o fígaro perguntava: “cabelo, barba ou sangria?” “Ah, eu estou com uma afta na língua...” “Pois então, é sangria!” O doente tirava as botinas, estendia o pé e o barbeiro passava a navalha na sola dos pés, fazendo dois cortes. O paciente ficava ali, sangrando, e vendo o sangue correr por uma pequena vala no meio do beco (que existe até hoje! Pode ir lá ver!).
Agora imaginem, uma vala de sangue no meio da rua! E desembocando no mar, ali, ao lado do Paço Imperial. Os ratos, baratas e tudo o que é bicho nojento se empanturravam naquele sangue pestilento! Bleargh!
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E por falar em vala, elas eram muitas pela cidade. A mais famosa delas era a que saía do Chafariz da Carioca (vide ilustração), que ficava no largo de mesmo nome (mantido até hoje). No Século 18, a cidade tinha falta de água em seu interior. Para conseguir o precioso líquido, tinham que ir até o Rio Carioca ou pagar os escravos aguadeiros. Daí, o governo abriu 11 chafarizes no perímetro urbano. Todos abastecidos pelo Rio Carioca.

O maior deles era o que ficava junto ao Convento de Santo Antônio. A água vinha por Santa Teresa, passava pelo Aqueduto da Carioca (hoje, Arcos da Lapa, veja a figura) e desembocava no Chafariz da Carioca, onde mulheres pobres, escravos e escravas pegavam água, lavavam roupa e o escambau. Dali, a água suja seguia por uma vala que já existia na atual Rua Uruguaiana (que tinha o nome de Rua da Vala), até o mar. Pelo caminho, recebia esgoto das casas do lugar.
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Tem uma história interessante sobre essa vala. No final do Século 18, o vice-rei Luís de Vasconcelos arrumou uma amante na Rua da Vala. Quando o marido da dadivosa senhora saía, o vice-rei ia lá afogar o ganso real. Um dia aconteceu algo inusitado. Estava lá, D. Luís, na maior saliência com a amante, quando ela ouviu sons na rua:
- Ih! É o meu marido!
D. Luís levantou-se da alcova de um salto:
- Caralhos me fodam! Ele não pode me pegar aqui! Eu sou o vice-rei!

- Esconda-se no armário!
- Ó pá! Sou português mas não sou burro! Até em piada todo mundo sabe que o armário é o primeiro lugar que os cornos procuram amantes!
- Então, alteza, cate seus panos de bunda e chispe-se pela janela, que ele já está entrando!
E foi o que D. Luís fez. Catou ceroulas, sapato, camisa, abriu a janela e pulou para a rua... atochando os pés na vala!
- Raios! Por todos os infernos! Que merda! @%&#$%§&*!!!!!!!! (Melhor não traduzir essa parte, esse blog é de família)
Daí, no dia seguinte, o vice-rei D. Luís mandou canalizar e cobrir a vala da Rua da Vala. Melhorou sensivelmente o saneamento do local. E isso, graças ao adultério da amante do representante da Coroa portuguesa. Estão vendo? Chifre é cultura e pode ser benéfico para a população.
Tempos depois, o chafariz foi desativado. E hoje, o metrô passa por baixo da Rua Uruguaiana, exatamente onde havia a famosa vala.
M.S.
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Quando eu dou minhas aulas e faço as minhas palestras sobre História Urbana do Rio eu conto essas histórias, falo assim desse jeito que eu escrevi. Pode ser a maior “fuleragem”, como dizem no Nordeste, mas nunca recebi queixas. O povo diz que aprende e não esquece...
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Na Rádio Antigas Ternuras, você está ouvindo “What a wonderful world”, com o grande Louis “Satchmo” Armstrong. Depois de falar de tanta merda que os seres humanos fazem, nada como uma melodia do céu para a gente lembrar do mundo maravilhoso que nos rodeia.