domingo, março 25, 2007

Avós do Cascão


E lá vamos nós para mais um texto da séria série “A História tem cada história”. Hoje, falaremos sobre um tema pra lá de prosaico:

Saneamento.

Vamos lá?
Diga-me você, ó leitor, existe coisa melhor do que chegar em casa, suado, e entrar numa ducha daquela que lava a alma da gente? Ou então acordar pela manhã e dar uma chegadinha no banheiro, sentar no trono e mandar um “número 2” com toda calma e delícia do mundo, tem coisa mais prazerosa? No primeiro caso, ao fim do banho, fechamos a torneira e tudo o mais escoa pelo ralo. Nada mais temos a ver com aquelas águas. No segundo, ao fim da “obra”, apertamos um simples botão e aquele pedaço de nós desaparece de nossas vistas sem mágoas, sem despedidas. Que coisa boa, né? Mas, olha, antigamente não era assim, não!
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Até o Século 19, iniciozinho do 20, a quase totalidade das casas não tinha banheiro. Aquele cômodo reservado, onde lavamos o nosso corpinho sensual, onde também tiramos a famosa “água do joelho” e ainda eventualmente “esculpimos uma cerâmica”, só bem mais tarde entrou para o cotidiano das casas.
“Mas, como é que era?” – perguntariam vocês, com olhinhos fúlgidos de curiosidade.
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Bem, ao longo do Brasil Colonial e mesmo do Brasil Império, tomar banho era praticamente uma cerimônia, um ritual. Não existia um cômodo específico pra isso: trazia-se uma enorme tina de madeira pro quarto, enchia-se de água quente (ou morna, ou fria, de acordo com o gosto de cada um) e começava o banho da família. Em tempos idos, toda a família tomava banho na mesma água, começando pelo chefe, depois pela mãe, o filho mais velho, assim por diante. O filho mais novo tomava banho na lama de seus parentes. Sorte dele que, como banho era uma cerimônia, não acontecia todos os dias.
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A família branca brasileira descendia diretamente de portugueses, que, como os europeus de forma geral (posso garantir isso pelos latinos e anglo-saxões; não estudei eslavos e nórdicos detidamente) viam o ato de tomar banho como uma obrigação, e digo mais: um ato perigoso e arriscado. Explico.

De tempos em tempos, a Europa era flagelada pela Peste Negra (nome que davam à peste bubônica), que matava gente feito moscas. Em Portugal, teve grandes surtos nos Séculos 14, 16, 17 e 19. Os médicos de então, diziam que quando as pessoas tomavam banho, tiravam a proteção natural da pele. E mais: os poros ficavam abertos, propensos a pegar doenças que estavam no ar (eles não sabiam que a bubônica se pegava pelos ratos). Daí, quando um rei tomava banho, ficava de quarentena por umas três semanas, não atendendo a ninguém, não dando audiências, para que seus poros abertos não captassem nenhuma doença. Da mesma forma, se um nobre ou plebeu tomava o seu banho (anual, semestral, mensal...), ele não queria saber de contatos com quem não tivesse se lavado, pois temia pegar alguma ziquizira. Nessa, tomar banho passou a ser coisa muito perigosa, já diriam os avós do Cascão. Tal costume veio pro Brasil. Os portugueses estranhavam o fato dos índios viverem se banhando todo dia, toda hora. Os nativos, ditos selvagens, reclamavam do fedor da portuguesada, que não era chegada a uma lavação. De qualquer forma, o hábito do banho diário só entrou nos costumes locais bem mais tarde.
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Voltemos para o Século 19. Falei do banho, agora falo do natural hábito de se “escorregar um moreno”, “arriar uns tocos”, como diria o povaréu.
Isso todo mundo fazia e faz em qualquer época, sem restrições. Tem gente que ainda “desliza o barroso” cantando “você foi saindo de mim, devagar e pra sempre...” Pois é. Mas antigamente, puxava-se o penico que jazia embaixo das camas (era de barro, ferro esmaltado ou porcelana, de acordo com as posses da família), sentava-se o buzanfã e se paria um “rabo de macaco”, que se aninhava caprichosamente no fundo da peça. Em determinada hora do dia, alguém (escravo ou membro da casa) recolhia o conteúdo barroso dos penicos, deixando-os limpos para serem novamente usados. A complicação estava em se definir qual destino dar ao conteúdo dos penicos...Aí é que estava o busílis!
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Eram duas as opções: uma, era abrir a porta ou janela, gritar: “arreda, ioiô, que lá vai cocô!”, arremessando a “cerâmica” à sua própria sorte. Quem trafegasse pela rua, ao ouvir esse alerta, tratava de se defender do torpedo fedorento que viajava pelos ares. De forma geral, o toletão caía em alguma vala negra ou mesmo jazia pela rua, feito um galho escatológico, um resíduo do outono visceral humano (eita, que hoje eu estou com a cachorra!).
A outra opção, era despejar os penicos num barril que continha “as águas da casa” – o conteúdo das tinas de banho, das tinas de lavar louça etc. Em determinada hora do dia, um escravo da casa ou empregado da família levava este barril para despejar no mar. Ou então, contratava-se um dos “escravos-tigres”, também chamados de os “tigrados”, que eram a “Companhia de Águas e Esgotos” da época. Eles zanzavam pelas ruas do Rio de Janeiro, com um barril na cabeça. Se alguém quisesse se desfazer de suas “águas de casa”, despejava o conteúdo de seu barril no barril do escravo. Pagavam algumas moedas e o “tigrado” se incumbia de jogar os restos no mar.
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Por que “tigrados” ou “tigres”? Bem, os negros andavam pelas ruas do Rio com um barril cheio de merda na cabeça. Com o fortíssimo calor, a bosta derretia, escorria pelas frestas do barril e, obviamente, pela cabeça e rosto do escravo, que ficava com a cara preta cheia de listras marrons, lembrando um tigre...
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O curioso nesta história era onde os “tigres” despejavam o conteúdo dos barris. No mar, diante do Paço Imperial (veja na ilustração, no círculo vermelho). Ou seja, vários barris de titica eram despejados defronte ao Palácio do Governo Imperial brasileiro. Imagina fazerem isso em Brasília, diante do Palácio do Planalto! (Até já posso ouvir meus amigos blogueiros DO e Marconi Leal dizendo: “hoje a bosta está DENTRO do Palácio do Planalto!”)
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Já imaginaram o cheiro que as ruas do Rio tinham naquela época? E o mar, nas proximidades do Centro? Eca! Eca! Eca!
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Este post está ficando muito grande. Continuo na próxima postagem. Tem outras historinhas interessantes sobre hábitos de Higiene do Rio Antigo. É só aguardar.
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Na Rádio Antigas Ternuras, você está ouvindo Simone cantando “Saindo de mim”, em homenagem ao que sai de nós... “de uma forma sincera...definitivamente”...

24 comentários:

Lila Rose disse...

Oi, Marco. Queria dizer que eu AMEI o seu blog...lindo mesmo!!! Quanto ao post, muito interessante... eu adoro garimpar objetos antigos pelas feiras aqui do Rio e outro dia encontrei uma cadeira muito interessante, tinha um tampo que levantava e embaixo uma gaveta onde se colocava o pinico...só quem tinha grana podia ter uma dessas, né? Bisous!

Anônimo disse...

"aquele pedaço de nós desaparece de nossas vistas sem mágoas, sem despedidas", aff! que dramático,rss
Não precisa ir tão longe pra lembrar das "casinhas" usadas por nós do lado de fora da casa grande, onde dentro existia um belo banheiro pouco usado [eu vivi isso,rsss]
Que história heim amigopratodavida??
Adoro água de beber, de lavar a alma, de nadar, de relaxar, muito bom mesmo, como seu belo post.
linda semana querido
beijosssssssssssss

Eärwen disse...

Marco, você é fantástico!
Como é bom vir aqui e ler os fatos reais que são a nossa história.
Deixo-te pérolas incandescentes de saudades.
Eärwen
26.03.07

Anônimo disse...

Não é ótimo a gente ver como as coisas evoluem? E ver que um hábito de hoje era considerado um perigo há muito pouco tempo?
Boa lembrança do que fomos. E disto, acho, não temos saudades, não.

Anônimo disse...

chato demais vir aqui após ler vc or "lá". não to retribuindo a visita. juro q não, so aproveitei a sua visita pra vir aqui. perdoe-me pelas ausencias que são tantas. saudade de te ler. mas eu tinha que vir logo hoje? n podia ser amanha ou ontem e ler algo menos marron? hahahahahaa
adorei te ler, bateu saudade aqui. muita. ler vc é aumentar o nosso conhecimento sobre o passado. rs

beijo
e beijo

Lara disse...

Marco você é sem dúvida alguma uma figura. "o pedaço de nós desaparecendo" foi o melhor hahahha!
Fiquei imaginando o cheiro do Centro da cidade, pior do que o cheiro daquele mangue na linha vermelha! Argh!
beijos e saudações vascaínas!

Anônimo disse...

Pois eu to doido pra ler a continuação deste post,MARCO.
Sobre a ausencia de banho eu até ja conhecia e agradeço aos céus por ter nascido numa outra época. Ninguém merece conviver com gente sem o bendito costume da limpeza.
Qto ao tal famigerado número 2,não sabia da história.
Achei interessantíssimo os tais tigrados.
Meu Deus!!

Abração,MARCO!!

Ah,nem precisei falar sobre a referência do Planalto,hehehe. Vc já o fez muito bem.

Claudinha ੴ disse...

Olá Marco!
Você hoje realmente está com a cachorra! Mininodocéu, que papo brabo! Eu fiquei rindo aqui e vejo que não sou só eu que usa expressões engraçadas. Eu não sabia dos tigrados. Lá em Ouro Preto, toda casa tinha fossa e há muitas histórias de terror ou comédias, envolvendo os pobres que se aventuravam a ir lá fora à noite. Quanto aos penicos, já vi de tudo, até o do Imperador e garanto: as jabuticabeiras, fruto das sementes passadas pelos sucos gástricos dos escravos, não me deixam mentir: felizes daqueles que iam lá fora ao ar livre...
Quanto ao banho escasso, tô fora! Ainda mais eu que sou doida com pefumes! Castelos medievais e a história antiga sempre me encantaram mas sei que na verdade pessoas e casas fediam demais... Eu não aguentaria...
Ih, virou testamento.
Beijão. Boa semana!

Luma Rosa disse...

Marco, estou conformada!! Não quero voltar ao passado. Nunca tinha pensado no detalhe da higiene. Confesso que tenho estomago fraco e da metade do texto até o fim, fiquei enojada.
Eu como caçula, estaria muito mal na fita. Beijus

Anônimo disse...

Meu caro Marco,
A postagem de hoje está um primor de texto e informações. E pensar que muitas desses dados se perderiam não fosse tua vocação de minerador dessas pérolas!
Parabéns, amigo! E um forte abraço.

Anônimo disse...

Sensacional! Não é à toa seu sucesso na blogosfera. Abraços.

Anônimo disse...

Adorei este post!
Adoro história, como portuguesa que sou adoro a minha história. E, felizmente, as nossas uniram-se!
Conhecia todos esses detalhes que contas. Com alguma diferença no palavreado, é certo, mas assim é bem mais engraçado.
Realmente, a Europa passou por algumas "vergonhas", mas climas diferentes, jeitos de viver bem diferentes! Aprendemos uns com os outros, é isso que importa!
Mas, devo salientar que, tendo em conta um estudo feito, os portugueses são dos que mais banhos tomam na UE! loool Evoluímos muito desde aquela época! Graças a Deus! loool

Anseio por ler a continuação da História!

Espero mais visitas no meu cantinho! *.*

benechaves disse...

Olá Marco: com um fino humor vc descreve o que acontecia antigamente. Era de lascar, hein?! Ainda bem que não nasci nessa época. Parabéns pela narrativa que nos prende do começo ao fim.

Um abraço...

Anônimo disse...

E passo a explicar: lol é "lot´s of laughs". Quando me rio, coloco looool! É usado nas salas de chat.
Aí no Brasil usam muito o hihihi e o hehehe... N é?

Bem, isto parece conversa de doido! loool (aqui está ele! :P)

*.*

Anônimo disse...

meu Deus, tomei um porre de história aqui querido...
Você é ótimo

um beijo enorme no coração
saudade

Anônimo disse...

ahahahhah, adorei o vocábulo!
bem, a história contextual tá boa. Bem boa.
Mas ainda hoje, no interior, os penicos são usados. Ou então, aquelas velhas "casinhas".
aiaia
nada de água para mandar a escultura embora, credo!

te beijo

Taís Morais

Anônimo disse...

FELIZMENTE eu não fui daquele tempo! Só me faltava essa!rsrsrs Adorei, Marco, adorei mesmo, principalmente pela maneira leve de contar! Um beijo!

Anônimo disse...

Marco,

Tava com saudades de vir aqui...
Menino eu amei esse seu post, e ri muito das suas tiradinhas pra galera que costuma fazer uma 'arte barroca"...mas que nojo hein, fico pensando nos coitados dos escravos que tinham que limpar os penicos, ou então como ficava o estado do penico qdo o cidadão tinha uma diarréia...kkkk
Afe maria, não gosto nem de pensar, eu não serviria pra viver nesse tempo.
Aliás, falando em tempo vc bem que podia contar pra gente como era no tempo que as mulheres usavam todas aquelas roupas e parafernálias né?
Imagina qdo elas menstruavam o cheiro de gamba morto???rs
Beijos

Anônimo disse...

Olá, Marco, sempre me divirto com os teus posts,rsrsrs...
Só de curiosa, olhei os comentários para ver se mais alguém tinha usado as "casinhas"! rsrsrs...
Parece pré histórico mas aconteceu comigo, além de ouvir novelas em rádio, fogão a lenha...
Beijos

Saramar disse...

Sempre aprendo por aqui.
A evolução é algo impressionante. Porém, ainda hoje, tudo é jogado nos rios e nos mares.
Só isso a inda não tem alternativa.

Beijos

Julio Cesar Corrêa disse...

Marco, o seu post me fez lembrar dos tempos em que a banheira era obrigatória em todos os lares. Tida como anti-higiênica, ela foi abandonada pelas novas construções a partir dos anos 60. Agora ela está de volta, muito valorizada e com novas versões mais luxuosas. O meu post de hoje fala do bairro onde moro, onde há diversas construções antigas e que passou a ser desvalorizado e tido como coisa de museu. Atualmente o meu bairro voltou a ser muito procurado por pessoas que querem o requinte e a elegância das velhas construções, com abundância de espaço, pé direito alto e valorização dos prazeres da vida, como um banho, por exemplo.
gd ab

Anônimo disse...

Achei seu blog muito interessante - coisa rara, infelizmente, na internet. Posso indicá-lo no meu?

Um abraço!

Renata Livramento disse...

Olá meu amigo! Como vai?
Seu blog como sempre arrasando, hein! Adoro vir aqui! bjo

Anônimo disse...

Oi Marco, é um prazer voltar aqui nesse lugar tão interessante que é o seu blog! Texto interessante tb...realmente os hábitos de higiene deixavam a desejar...argh!!! Rsrsrsrs...pra vc ver, até nossa História conta isso!
Parabéns pelos 02 anos de seu blog! Parabéns mesmo, pois com certeza comemorar tudo de bom que tem aqui é motivo de festejar!
Abraço carinhoso, Crissss...