quarta-feira, novembro 02, 2005

Sonata


Um original de Marco Santos
Personagens: Avô
Tiago
TIAGO – Vô...Por que tem de ser assim?
AVÔ – Todas as coisas seguem uma lei, Tiago. Não existe a lei da gravidade? Leis dos homens, leis divinas...Não há como fugir dessa lei, desse ciclo: nascer...viver...morrer...
TIAGO – Mas dói muito, vô...Meu pai me disse para ver a morte como se fosse uma viagem. Mas quando minha mãe viajava eu não sentia dor. Depois que ela se foi de vez...puxa! dói demais!
AVÔ – O que dói é a incerteza. Quando alguém faz uma viagem longa, nós até podemos sentir saudades. Mas temos a certeza de que a pessoa vai voltar e isso nos consola. Quando alguém morre, não estamos certos se vamos revê-lo. Por isso dói tanto...Veja a morte como uma transformação. Você já deve ter visto algum filme mostrando a fecundação humana. Aquela cobrinha se junta com um carocinho e faz o milagre da vida. Você já pensou que já foi uma célula que se transformou nesse rapaz tão bonito? Pois então! Nós estamos sempre em transformação. Quando morrermos, nos transformaremos em outra coisa.
TIAGO – É...Só que a gente não sabe conviver com a certeza da morte. É como se fosse um crime ou uma doença grave que a gente sempre vê acontecer com os outros. Até que acontece perto da gente...
AVÔ – Nós temos mais medo da morte do que ficarmos doentes. E, muitas vezes, certas doenças são piores do que a morte. Veja, Tiago, nós estamos aqui no cemitério. Nesse momento você está ouvindo alguma coisa?
TIAGO – Não.
AVÔ – E por que?
TIAGO – Ora, vô...Estamos cercados por mortos. Eles não fazem barulho...
AVÔ – E se eu te disser que estamos cercados por vida? Veja, ali naquelas flores sobre o túmulo da sua mãe...O que você vê?
TIAGO – Nossa! São abelhas!
AVÔ – Elas estão retirando o pólen e o néctar das flores. Sugam a doçura da seiva da vida sobre uma caixa de morte. E vão transformar tudo em alimento para outras abelhinhas. A vida tem de seguir. Onde você vê silêncio de morte, existe toda uma sinfonia de vida. Uma sonata de zumbidos, bater de asas...Além das abelhas, milhões de outros insetos, micróbios, aves estão na azáfama cotidiana para continuarem vivos. Nossos sentidos são muito limitados...
TIAGO – É verdade, vô...Queria que o senhor estivesse sempre comigo para me ensinar coisas.
AVÔ – E quem disse que não vou estar? Mesmo depois que eu também me for, mesmo quando chegar o momento em que você mesmo descobrirá as coisas por si, ainda assim eu estarei perto de você.
TIAGO – Shhh...Vô, olha! Um beija-flor! Está vindo sugar as flores de mamãe! Quem sabe não é ela mesma que veio me dizer que está bem e que estará ao meu lado?
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Esta história é mais uma das radionovelas que eu escrevi, em 2002, no tempo em que gravava para uma rádio comunitária. Fica como minha lembrança pelo dia de hoje.
M.S.

8 comentários:

Anônimo disse...

Este diálogo é de arrepiar, meu caro aluno. Muito apropriado para (re)encontrar o consolo que as memórias evocadas por esta data costumam nos fazer perder. Sobre nossas aulas, avise assim que encontrar o contador perfeito para que possamos retomá-las (se é que o aprendiz já não dá conta sozinho do recado). Um grande abraço!

Anônimo disse...

Puxa,Marco,o desfecho foi tudo.

É sempre o final de quem sabe escrever que é a chave dourada do emotivo.

Parabéns. E se tiver mais do mesmo quilate,que desencaixe do seu baú sépia da qualidade.

PS: vim aqui pelo teu link no blog da Carla Anjos. Rapaz,faltou que eu colocasse na minha lista lá o filme europeu da minha minha vida,para repetir o que disseste: AMARCORD! Ah,Nino Rota...

Abraços.

Anônimo disse...

O contador na minha cara e eu querendo ensinar o padre a rezar a Missa. :-D

Anônimo disse...

Sabe,

aprendemos a não aceitar a morte.
e ela é tão óbvia

beijão....

Anônimo disse...

Caro Marco:

Muito obrigado pela sua luxuosa assinatura no meu Livro de Visitas.
Você se expressa de uma maneira sutil e saborosa,original. É dos meus.

E foi com prazer com inseri o link do teu ANTIGAS TERNURAS,por si só já um poema pelo título.

Tudo de bom com um abraço.

Marco disse...

Meu bom Patriota! (legal escrever assim, né?
Eu é que tenho que agradecer pela sua visita e por seus comentários. E obrigado pelo link. Com muito prazer vou retribuir e recomendar o seu excelente blog para todos os meus amigos.
Volte sempre, pois aqui você será considerado como "de casa".
(A partir deste roteiro de radionovela, você pede para eu "abrir o baú da qualidade". Bem, não sei se estes textos têm tanta qualidade assim, mas já publiquei alguns aqui no AT, em meses passados. De vez em quando eu publico um ou outro, recordando o tempo bom em que eu gravava e escrevia radionovelas).

Marco disse...

Pois é, querida Claudinha...Nem tudo o que é óbvio é aceito e compreendido. Não é óbvio que viver sem violência é melhor para todos? É triste saber que tantos não aceitam isso. Beijo, linda.

isabella saes disse...

pois é, essas reflexões sobre a morte vêm sempre a minha mente inquieta... não serei hipócrita: não a aceito bem. ainda tenho muito a aprender para digerí-la como parte natural da vida. quando perdi um de meus melhores amigos assassinado por um bandido no rio de janeiro, pirei! enfim, aceitá-la, para mim, é um exercício. eu chego lá! (nos dois sentidos... he, he!) beijos e parabéns pelo blog, bella.