quarta-feira, junho 24, 2009
Ritos de Partida
Entrou em cartaz, aqui no Rio, o filme “A Partida”, produção japonesa que venceu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na última festa do careca dourado. Fui assisti-lo no final de semana passado e posso dizer, sem receio de errar, que dos 53 filmes que assisti em 2009, este é, até agora, o melhor. Mas não quero me deter na apreciação de seus méritos estéticos cinematográficos, isso eu vou deixar para a época em que eu atribuirei o Prêmio Pipoca Fumegante aos melhores filmes do ano que passou.
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Eu não me lembro de um filme que tenha me emocionado tanto nos últimos anos. Do que ele trata? No fichamento que faço de todas as obras cinematográficas que assisto em salas de cinemas, eu escrevi no “Resumo”: Violoncelista perde o emprego numa orquestra, por conta da crise, e resolve voltar para a sua cidade natal, onde consegue trabalho como agente funerário.
No Japão, antigamente, cabia aos familiares preparar o corpo dos entes queridos que tinham desencarnado. Hoje, já não fazem mais isso. Em cidades do interior, há agentes funerários que são contratados para aprontar, vestir, ataviar os que partiram. Eles fazem o trabalho com ritos cuidadosos, diante dos familiares. Nas grandes cidades, não tem disso, não. O procedimento é o mesmo do Ocidente. As funerárias cuidam dos preparativos longe dos olhos da família e imagino que o façam de forma absolutamente impessoal, totalmente profissional.
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Devo confessar que eu não tenho boa relação com a chamada “a mais indesejável das visitas”. Já tem bastante tempo que ninguém da minha família canta pra subir e eu acho ótimo que assim esteja sendo. Mas inevitavelmente vai chegar uma hora em que essa cômoda situação vai mudar...
Por minhas próprias convicções, creio ser a morte apenas uma passagem, uma mudança de estado. O padre Antonio Vieira, em seus famosos sermões, diz que somos como as folhas das árvores: “vivos, somos folhas em movimento; mortos, somos folhas paradas”. A nossa anima utiliza uma casca, um invólucro, para se manifestar neste mundo físico. Todavia, nós somos o sopro que “anima” estes receptáculos, estes corpos. Não somos os corpos, somos o que dá vida a eles. Mesmo assim, não é fácil nos desapegar desta matéria densa, daí o sofrimento de quem fica. E falo isso para os que crêem, como eu, na existência da alma. Para os que não creem, os que acham que “morreu, acabou”, a situação é bem pior, na minha opinião. O sentido de finitude deve exasperá-los, angustiá-los até mesmo sem eles perceberem.
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No filme, eu vejo aquele senhor e seu auxiliar despir, lavar, barbear os homens, maquiar as mulheres, penteá-los, vesti-los em gestos calmos, quase parecendo uma coreografia. Aliás, é uma coreografia. Só que eles não estão lidando com manequins. São pessoas muito amadas, que até bem pouco tempo estavam vivas, alertas, rindo, chorando, abraçando... A partida, de que fala o título do filme, pode ser vista como um momento temporário de despedida, como se aquele alguém fosse viajar. Para os que acreditam que tudo se encerra por aqui com a morte, bem, aí será um instante de despedida definitiva. Em qualquer das duas situações, a vida segue.
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No filme, há várias cenas que simbolizam este prosseguimento. Num determinado momento, o rapaz está angustiado por ter aceito aquele emprego que é visto pelas pessoas como “impuro”. Ele está debruçado numa ponte sobre um rio, onde ele percebe dois salmões fazendo enorme esforço para nadar contra a correnteza. Então vem descendo, pelo fluxo das águas, um salmão morto, provavelmente vencido pelo cansaço no seu afã de subir a corrente e desovar. E logo vem mais outro salmão morto e ambas carcaças passam pelos que nadam e isso não faz com que os peixes desistam de seu intento, ao contrário, nadam com mais força. Para eles, a vida segue.
Em outros momentos, após cenas em que mortos foram preparados, aparecem bandos de patos selvagens em voos graciosos, ou cerejeiras primaveris balançando ao vento, soltando suas belas e perfumadas flores. Definitivamente, a vida segue.
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Mas o que me emocionou no filme, a ponto de fazer com que eu escrevesse estas mal tecladas linhas? Ver aqueles ritos de partida, preparando entes queridos para o “até breve”? Constatar que a morte pode ser uma derradeira oportunidade para acertos de contas, arrependimentos e remorsos vãos?
Talvez...
Contudo acredito que o fato de se aproximar mais um aniversário de morte de meu velho pai – no próximo dia 28 de junho - fez com que mexesse comigo. Há no filme uma cena linda, em que o pai do rapaz explica a ele o que é uma “carta-pedra”. Ele o levou para um riacho cheio de pequenos seixos (onde o rapaz levaria a esposa, anos depois) e pediu que escolhesse um que simbolizasse o seu estado de espírito. O menino pegou uma linda pedrinha branca e lisa e a deu ao pai. E recebeu deste um pedregulho disforme, grande, escuro. O menino só entenderia o significado disso bem mais tarde.
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Eu não troquei nenhuma “carta-pedra” com meu pai. Nossa despedida se fez por uma troca de olhares e de tímidos sorrisos entre nós, antes dele entrar no carro que o conduziu ao hospital, onde faleceria.
Se eu soubesse que era nosso último momento, teria corrido até ele, e o abraçado com força, e dito a ele que nunca o esqueceria, que sentiria muito a sua falta por toda a minha vida e, meu Deus, por que eu não fiz isso? Por que perdi esta oportunidade de deixar esta carta-pedra com ele, para que ele a tivesse diante dos olhos quando os fechou pela última vez?
Amigos amados, não percam a oportunidade de dar cartas-pedra aos seus entes queridos, façam seus ritos de partida enquanto eles estão vivos. A vida segue e sempre seguirá. A saudade dos que se foram, nunca, nunca vai acabar.
M.S.
(Para ver o trailer do filme A Partida, com 1min 52seg de duração, clique no botão com “X” no alto, na barra de ferramentas, interrompendo a música de fundo)
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Na Rádio Antigas Ternuras, você ouve Joe Hisaishi, autor da lindíssima trilha sonora do filme, da qual escolhi esta: “Okuribito – Memory”
Na TV Antigas Ternuras você vê o trailler de “A Partida”.
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19 comentários:
O seu comentário e aqueles que já li sobre o filme me fazem programar para vê-lo em minha volta ao Rio. De fato, o seu texto é muito bom.
Um abraço.
Marco, também estou doida pra ver esse filme...
Meu pai está tão velhinho e perdendo a lucidez... Também penso em como será, mas a nossa vida com ele foi tão complicada, que eu não sei como reagiria/reagirei... Hoje briguei com minha filha (com razão, coisa pro bem dela) mas ficou uma dorzinha e pensei ao ler o seu post: "e se eu partisse, se Ele me carregasse agora, eu sairia do palco brigada?"
Agora ela está dormindo, mas amanhã serei uma mãe legalzinha novamente, prometo...
Obrigada, querido amigo!
Meu amigo Marco. Aqui tbem faz tempo que não passanos por hora tão triste. Pela idade dos meus pais e da minha avó materna,entendo que logo terei que passar por isto. Não é facil. Vc conseguiu deixar-me muito curioso com relacao a este filme. Não curto muito filmes japoneses,mas este certamente tem uma linda mensagem.
Valeu mesmo!
Abração!!
Olá Marco!
Mais uma vez venho aqui parabenizá-lo por essa beleza que é esse seu blog aqui!
Quero muito ver o filme, principalmente por ser casada com um sansei!
Um abraço
Parabéns pela melancólica textualização deste que é um dos momentos mais difíceis da vida de qualquer mortal, caro primo... Esses orientais é que sabem das coisas... Uma pena que, estando em São Luís, dificilmente verei este filme, a não ser pelo apelo comercial que ele possa vir a ter quando do lançamento em vídeop para alguma locadora... Abração!
Esse filme juntamente com Caramelo estão na minha lista de prioridades urgentíssimas, ou seja, amanhã...
Suas análises são espetaculares e aguçam a curiosidade em ver o filme, saio daqui com água na boca.
lindo dia amigopratodavida
beijos
*Também me orgulho muito de ser sua amigapratodavida, viu? ;)
Olá Marco!
Fiquei emocionada com o post. A música é maravilhosa, sinceramente uma das mais lindas que já ouvi. As palavras suas de menino me deixaram comovida. Você era uma criança e não saberia o significado mesmo. Assim como o moço do filme, só soube anos depois. Acho que é por isto que escolhemos voltar neste plano e arrematar nossas costuras com as linhas e os panos da vivência. A troca de sorrisos foi sua carta pedra. Eles eternizaram a ligação e, num futuro longíquo, você sabe que poderão recomeçar deste mesmo sorriso cúmplice e cheio de amor. Você não entendia no momento, mas ele sim e certamente não tinha motivos para sorrir naquela hora de mal estar, no entanto, ao te olhar ele lhe deixou este presente eterno. É um selo que marcou você. Fiquei com uma vontade imensa de ver este filme. Parabéns pela postagem!
Beijos!
Marcos seu texto nos faz refletir sobre nossos atos perante a vida e a morte. Nunca dei um adeus decente a nenhum ente querido. Eles apenas se foram e deixaram as lembranças de suas vidas. Esse ritual que você descreveu do filme eu entendo como uma homenagem a alguém querido. Pena que hoje é tão frio o tratamento que se dá aos que se vão.
Essa semana vi uma peça: Caras e Bocas - filme Noir no teatro do Sesc que gostei muito. Aí lembrei da última vez que assisti você atuar. Claro que não tem nada a ver uma peça com a outra, apesar que a sua me fez rir a valer, mas me veio a lembrança.
Saudades e beijos mil.
Marco,
O cinema japonês já foi um dos maiores do mundo, na época em que viviam Kurosawa, Ozu, Mizoguchi e outros de menor talento. Hoje está um tanto em baixa, como, de resto, o cinema de outras nacionalidades. Mas pelo seu comentário, vou ficar atento a esse filme e, ao sair em DVD, irei vê-lo. Um abraço e um excelente fim de semana.
Merece uma segunda leitura. Volto em breve.
Depois dessa linda crítica do filme, vc me conveceu que tenho de ver o filme o mais rápido possível. Como moro no fm do mundo, vou ter que esperar para ficar acessível na net ou então encomendar ao pirata de filmes japoneses de NY, que acho vai ficar mais rápido... Também não troquei carta-pedra com o meu pai...
Muito emotivo este teu post.
E concordo contigo, temos de viver a vida, sem receio de mostrar os nossos sentimentos às pessoas que mais amamos porque, de um momento para o outro, tudo pode terminar.
Um abraço!
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querido, que bom que vc gostou! e que texto sensível, emocionante assim como o filme. vou ver a era do gelo 3, conforme indicado por vc!! beijos.
Nossa, Marco, seu texto deve ser tão ou mais comovente que o filme. Ainda não consegui assistir, está na lista. Mas depois de tudo que você disse, virou um must. Um beijo carinhoso para um blogueiro tão sensível, que se expressa tão lindamente.
53 filmes????!!!! Acho que assisti 1/5 disso... Na vida toda obviamente...
Eu sei como é não ter tido a oportunidade de despedir-se de alguém querido e ter que engolir palavras para o resto da vida! Marco, quer saber, não vou assistir esse filme. Você já me fez chorar aqui e eu não quero chorar lá! Sinto muito pelo que não pode dizer a seu pai ou mesmo lhe dar um abraço, mas se acredita mesmo que exista algo além desta vida e que não somos somente carcaça, seu pai sabe o que queria dizer e já sentiu esse abraço. Beijus
Caro Marco, tenho uma família grande e quase todo ano, um ou mais componente faz essa viagem sem volta. É um tio, primo ou as vezes um amigo que se vai. É sempre um momento muito difícil em nossas vidas, que termina por provocar muitas reflexões. É o caso do filme, tão bem aproveitado por você. Um abraço, Armando.
Eu disse que voltava... Acho que queria esperar todo mundo comentar pra só você ler o que eu escrevesse. rs. Bom, todo mundo programou assistir o filme... Entrou na minha lista de 'não vou assistir'... Lidar com a morte é mais complicado do que eu pensava. Fiz estágio num hospital, sabia que inevitavelmente encontraria um corpo em algum momento, mas quando aconteceu, tive uma sensação de desespero, uma sensação de 'no fim das contas, eu não controlo nada'. Foi meu último dia de estágio (ninguém sabe disso). Não pude evitar derramar uma lágrima quando vc fala da sua despedida do seu pai. Por sentir a sua dor, e por assimilá-la. Desde a primeira vez que li seu texto, só fico pensando que meus pais vão morrer e eu vou ficar completamente perdida. E meu pai tem a idade do MichaelJackson (imagina meu desespero).
Acho que isso de morte não se aprende, né, só se vive. Só uma pessoa que eu amava morreu, e aí percebi que doía, então limito as pessoas que amo, pra não sofrer. E todos precisamos de um analista....
Lidar com a realidade cíclica da vivência humana tem pelo menos um lado bom... A gente passa a aproveitar os momentos, e decide vivê-los com intensidade, pra não dizer que está arrependido depois. Tenho certeza de que seu pai leu seu olhar carregado de emoção.
Chega, né?...
Abraço
Estou em falta com a sétima arte. Mas vou correndo procurar este filme. Valeu pela dica.
abração
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