
Dia 27 de setembro é dia de pegar doce. Pelo menos era no meu tempo... Eu chegava em casa, vindo do colégio, pegava um sacão e ia pra rua, atrás de guloseimas. Naquele tempo, no tempo das antigas ternuras, as mães não se importavam se os filhos passavam boa parte do dia vadiando pelas ruas. Não tinha perigo. Aliás, tinha muita mãe com filho nos braços disputando os doces com a gente nas filas e aglomerações onde se estavam distribuindo os saquinhos de papel com a imagem dos santos gêmeos...
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A propósito... A força da cultura popular é algo que não conhece limites, não é? Não há sequer comprovação de que tenha mesmo existido São Cosme e São Damião. Tudo bem, sei que existe uma tumba na basílica que o papa Félix IV construiu para eles em Roma e que presumivelmente contém seus despojos, mas não há certeza científica de que tenha mesmo havido dois irmãos santos, médicos cristãos, que faziam milagres e que por isso foram condenados, no Século III, ao tempo do imperador Diocleciano, a serem decapitados por ofenderem aos deuses. Há uma narrativa sobre dois médicos, que não se sabe se eram irmãos, cujos nomes eram Acta e Passio, que mais ou menos corresponde à história deles. A tradição diz que eles nasceram na Arábia, de pais cristãos. Tornaram-se médicos na Síria e praticavam a medicina, sem cobrar nada, na Egéia (na Ásia Menor). Isso numa época em que não existia plano de saúde, nem INSS. Tem pesquisador que garante que o mito de gêmeos heróis veio da mitologia greco-romana e que Cosme e Damião eram variações do culto pagão de Castor e Pólux.
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Para complicar mais ainda a situação, o culto aos gêmeos médicos foi assimilado sincreticamente no Brasil pelas religiões de origem afro. No candomblé, por exemplo, eles seriam os ibejis, que atendem aos pedidos dos fiéis em troca de doces e quitutes. É comum ver na Umbanda, representações dos dois santos acompanhados de um menino chamado “Doum” (do ioruba: Idowu), que protege as crianças com menos de sete anos.
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Bem, lenda ou não, era uma delícia correr atrás de doce no dia 27 de setembro. Em cada saquinho, surpresinhas que faziam a festa da criançada do meu tempo. Ah, que saudade dos doces de antigamente e que recheavam os sacos de Cosme e Damião! Tinha cocada, branca, preta ou rosa, pé de moleque, cocô-de-rato, mariola, doce de abóbora em forma de coração, doce de batata, dadinho, bananada em forma de triângulo no palito, pingo de leite, chiclete Ploc e/ou Ping-Pong, maria-mole, delicado, jujuba, bala Juquinha, bala de tamarindo, bala Toffe, confetti, suspiro, caramelo Embaré, moeda de chocolate, amendoim salgado ou doce, geléia de duas cores (amarela e vermelha), pirulito bola, torrone, paçoca... A cárie e a dor de barriga estavam garantidas!
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Eu gostava de pegar doce na macumba. Quer dizer, na Tenda Espírita Pai João, cuja proprietária, a Dona Eliete, se esmerava em rechear os saquinhos e ainda dava brinquedos! Não era à-toa que existia uma baita fila no dia em que se fazia lá a distribuição de cartões. (Parêntesis: tinha gente que, para evitar muita confusão, saía pela rua distribuindo cartões que indicavam o dia e a hora em que se faria a distribuição dos doces. Na verdade, só antecipavam a confusão, pois para pegar um dos cartões valia até pisar no pescoço de uma velhinha paralítica que atravessasse no caminho...)
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Quando eu fiquei mais rapazinho, além dos doces eu ia atrás de outros prazeres. Tinha algumas meninas taludinhas, que entravam na balbúrdia, disputando os saquinhos. E nós, canalhas juramentados, nos enganchávamos na bunda delas, tirando sarros homéricos.
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Lembro que uma vez eu me enganchei atrás da bunda de uma das irmãs do Jurandir que foi uma coisa louca! Acho que a safada estava bem gostando da situação, visto que ela até empinava a rabiola para facilitar as coisas. Quando acabou a confusão, eu estava com um saco de doces na mão e um “drops” dentro do short. Todo mundo reparou. Os meus amigos ficaram me sacaneando, mas por pura inveja. Naquela época, a única possibilidade de sexo para nós, do alto de nossos 12, 13 anos, era a conhecida cantora cubana, a “Palmita de la Mano”... Se é que vocês me entendem...
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Depois que enchíamos o sacão com os muitos saquinhos, era comum a gente se sentar e trocar alguns doces que não nos agradavam por nossos preferidos. Tinha gente que não gostava de cocô-de-rato (nome original: flocos adocicados de arroz) e de pipoca americana. Nem de “colchão-de-mola” (maria-mole entre dois biscoitos quadrados). Eu gostava de tudo. Para mim, se colocasse açúcar em tijolo eu morderia e ainda acharia uma delícia! Tinha casa cuja dona era mais pobrezinha e colocava nos sacos uma mariola, um pedaço de bolo solado e duas balas. Ela tinha feito promessa aos santinhos e dava doces conforme suas possibilidades. Eu não me importava. Emburacava em tudo!
Uma coisa interessante: um amigo meu, criado em São Paulo, disse que isso não tinha por lá. Que só foi tomar conhecimento desse negócio de dar doce de Cosme e Damião no Rio. Será que é um costume local?
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Hoje, eu não vejo mais distribuição de doces nas casas. Pelo menos, não na forma como era no meu tempo. O povo tem medo. Com a violência cotidiana não se brinca. E ainda tem os carros nas ruas, atualmente mais numerosos que na minha época. As mães já não deixam os filhos pequenos saírem na aventura em busca dos saquinhos de guloseimas. Putz... Que bosta de vida estas crianças estão tendo, né não? Quando tiverem a minha idade, que antigas ternuras terão pra contar?
M.S.
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Na Rádio Antigas Ternuras, você ouve “Gente Humilde”, letra maravilhosa de Vinícius e Chico Buarque, para a belíssima música de Garoto. Na voz, a fantástica Ângela Maria. Uma música que fala de casas simples, com cadeiras na calçada, exatamente como as que davam doces, no meu tempo de moleque... Aí me dá uma vontade de chorar...