
Eu cheguei diante da casa e vi o menino, sozinho, jogando bola de gude. Descalço, short e camiseta, ele manipulava os pequenos glóbulos de vidro com perícia, impulsionando uma e outra, ora com força, ora com suavidade.
- Olá.
Ele não pareceu se assustar com o meu cumprimento. Levantou os olhos e me viu. Gastou alguns instantes para responder, o que me levou a pensar que tinha me reconhecido.
-Oi.
- Quer jogar comigo?
Ao ouvir a pergunta, um certo brilho de cobiça faiscou naquele olho castanho de pestanas longas.
- À vera ou à brinca?
- Huum... Vamos começar à brinca. Estou destreinado, sabe? Depois a gente cai à vera.
- Tá. Zepe, triângulo ou búrica?
Eu lembrei que das três formas, búrica era a que ele mais gostava. Talvez porque demorasse mais.
No zepe, ele fazia o círculo no chão de terra batida com a tampa de lata de Toddy, onde guardava suas bolas de gude. Neste jogo, podia-se entrar no círculo e tecar as bolas de lá. Ganharia quem tirasse mais do zepe ou acertasse a bola do adversário.
No triângulo, se a bola de um dos jogadores caísse da linha pra dentro, o adversário ganhava. O jogo acabava com o fim das bolas no triângulo ou com um dos dois acertando a bolinha do outro.
Na búrica, faziam-se três pequenos buracos no chão, em fileira, com a distância de um passo largo entre eles. Daí, arredondava-se suas laterais com o calcanhar. Os contendores tinham que viajar pelas três búricas, ida e volta, e só aí conquistavam o direito de “matar” o outro.
- Marraio-firidô-sou-rei!
Nem me lembrei de dizer isso antes dele. Quem pedia isso ganhava o direito de jogar por último e seria o primeiro a jogar se acertasse a bolinha do outro naquela hora de decidir quem começava a partida. Joguei a minha bola de gude tentando fazer com que ela chegasse o mais perto da terceira búrica.
Claro. A bolinha dele chegou bem mais próximo. Ele começaria.
Jogou habilmente a sua bola dentro da primeira búrica e dali acertou a minha, mandando-a para bem longe. Eu percebi que ele riu. Não tão escancaradamente para parecer humilhação, nem tão imperceptivelmente para não deixar de saborear aquele momento de prazer.
- Você tem ido a cinema?
- Vou domingo agora. Está levando “Hércules contra Maciste”. Eu gosto de filme com deuses da Grécia.
- É, eu sei. Você não perde um desses filmes com personagens históricos.
Ele estava na iminência de chegar na terceira búrica. Com o meu comentário, ele parou o que estava fazendo e me olhou longamente. Percebi que ele estava tentando saber, silenciosamente, de onde eu poderia conhecer o seu gosto por filmes e por mitologia grega.
- Sou papa! Agora, tome cuidado!
Ao ter completado o percurso, agora ele tinha o direito de me matar. Tentei distraí-lo. Não queria que o jogo terminasse logo.
- Você vai daqui pro cinema pegando ônibus?
- Não. Minha mãe me dá o dinheiro da passagem, mas eu vou a pé e compro um sorvete.
Ele gostava do sorvete daquela máquina que tinha vidros com xaropes coloridos. Pedia sempre o de uva e ficava olhando a massa da guloseima descer lentamente para dentro da casquinha, enquanto o operador ia controlando o fluxo de xarope. Ao final da operação, lá estava a casquinha pronta, com a massa do sorvete em tom lilás, e o forte sabor de química que agrada a paladares pouco exigentes.
- Arrá! Sou papa também. Vem ni mim procê ver!
E ele veio. Mediu um palmo, posicionou a mão direita e disparou sua bolinha na direção da minha.
- Matei! Rá! Rá! Rá! Rá!...
Há quanto tempo eu não ouvia aquela gargalhada de menino que ainda não engrossou a voz.
- Tudo bem. Perdi. Agora vou ter que ir. Foi bom o jogo.
- Mas só uma? Vamos pra outra!
- Acho que não vai dar tempo... Quem sabe outro dia.

Nisso, ouvi uma voz gritando dentro da casa, chamando o menino para almoçar.
- Gostei de jogar contigo. Hoje a tarde vai ter jogo no campinho?
- Vai! Hoje tem pelada contra o time da turma do Valão. O senhor vai assistir?
Estranhei ele me chamar de “senhor”. Mas lembrei que ele sempre chamava os mais velhos assim. Fora ensinado pela mãe a sempre respeitar quem tinha mais idade.
- Tome. Fique com as minhas bolas de gude. Agora tenho que ir. Até logo.
- Até logo. Volta aí quando quiser...
Fui caminhando devagar, cheguei a ouvir a mãe do menino, que aparecera na janela, perguntando a ele:
- Marco, você está falando com quem?
- Com aquele moço que vai ali.
- Que moço? Não estou vendo ninguém... Tá maluco?
Não, mãe. O seu menino não está doido. Ele haverá de crescer e lhe dar muitas alegrias, como a senhora bem gosta de dizer.
Ainda escutando a voz dela, senti que estava acordando daquele sonho tão agradável...
M.S.
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Na Rádio Antigas Ternuras, você está ouvindo 14 Bis e “Bola de meia, bola de gude”. Tem música mais apropriada para este post?
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Festa do Oscar: dos cinco bons filmes, ganhou o menos bom deles. A Academia tem sempre uma surpresa...
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“Mengão eliminou o time dos bacalhosos”. Nem Drummond, Vinícius, Neruda poderiam escrever uma frase com tanta poesia como essa... Ahhhhhhhhhhh!
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Pessoal: estou tirando um restinho de férias que ficou faltando. Ficarei fora do ar por uns tempos. Até a volta!