quinta-feira, junho 01, 2006
Uma história de estâncias mineirais
Quando eu escrevi sobre o filme “Tapete Vermelho”, mencionei uma história que é apresentada nele e que faz parte do folclore de Minas Gerais. Inclusive, minha avó contava para a minha mãe, que contou pra mim e pros meus irmãos e eu conto pra vocês. Além dessa, tinha uma outra história que ela contou e que ficará para uma outra vez. Esses causos vêm de longe. Imagino que a minha bisavó já contasse isso, e que talvez já as tivesse aprendido da mãe dela. Coisa boa de se ouvir, em redor de uma fogueira, uma violinha no fundo, um café quentinho adoçado com rapadura...
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No interiorzão de Minas, nas estâncias de lá, toda a família tinha que pegar na enxada. Mesmo as mulheres com filho amamentando davam de mamar aos filhos e, enquanto eles dormiam, iam dar uma força na roça. Quando voltavam, reforçavam o jantar mamário dos nenéns e assim criavam os catarrentos.
Conta-se que uma mulher camponesa, com o filho ainda pegando peito, acordava cedinho, tirava o filho no berço, dava de mamar e aproveitava aquele momento para espichar o sono ainda um bocadinho mais. Saía para trabalhar, deixando o filho em casa, deitadinho no berço rústico, aos cuidados da filha mais velha. Voltava ao cair da tardinha, moída de cansaço, pegava o moleque no berço, tirava o peito pra fora, e chegava a adormecer enquanto o neném se servia.
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A mulher percebeu, no entanto, que o filho estava cada vez mais magrinho, embora mamasse nos seus seios até a última gota. Achou que ele tivesse doente. Naquele tempo, e especialmente naquelas paragens, médico era que nem saci-pererê: todo mundo já tinha ouvido falar que existia, mas nunca tinham visto um. A solução era apelar para benzedeiras e curandeiros. E a mulher levou o garoto para um velho que sabia rezar e usar ervas, a medicina do sertão. E o curandeiro percebeu que ali tinha coisa. Pediu que ela voltasse para casa, que ele a visitaria naquela noite.
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Findando a tardinha, a mulher retornou da labuta no campo e fez o que costumava fazer: pegou o filho no berço, e deu-lhe de mamar, adormecendo em seguida. Nisso, o velho curandeiro apareceu na janela do quarto e ficou à espreita. Foi quando ele viu uma cobra gorda, imensa, sair debaixo do berço do neném, rodear a mulher e afastar o garoto do bico do peito da adormecida. Em seguida, o asqueroso réptil abocanhou o seio da mulher, sugando em movimentos contínuos. Como o garoto começasse a se movimentar, em busca do seio perdido, a cobra levantou a ponta do rabo e encostou na sua boquinha. O neném pôs-se a chupá-lo, como se um seio fosse. Depois de sugar todo o leite que pôde, a bicha se afastou, enfastiada, retornando a se enrodilhar debaixo do berço.
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O curandeiro bateu na janela:
- Ô cumadre! Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
A mulher acordou assustada:
- Ara veja! Pra sempre seja louvado! O que foi cumpadre?
- Vosmicê me dá licença de entrar? Vim resolver o problema do seu minino.
Permissão dada, o homem entrou com uma foice na mão. A mulher se assustou.
- Deixa, cumadre. Que isso aqui é a cura para o mal do pequeno!
Num gesto largo, empurrou o berço para o lado. A mulher, aterrorizada, viu aquele baita cobrão ali, sonolento, com leite ainda pingando da boca gosmenta. Então compreendeu tudo.
Zás!
A foice cantou no lusco-fusco do quarto.
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A foiçada atingiu a cobra pelo meio do corpo escamoso. Com o talho, espirrou leite de peito para tudo que é lado, enquanto o réptil protestava de dor, emitindo um som rascante, que penetrava nos ouvidos de quem via a cena. O segundo golpe pegou na altura da cabeça. E o som cessou.
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Dali em diante, tanto aquela camponesa quanto todas as mulheres da localidade passaram a examinar os quartos onde ficavam os filhos. E permaneciam acordadas enquanto amamentavam os filhos. Conta a história que mais de uma cobra foi encontrada por perto de sítios onde tinha mãe com leite no peito.
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No filme, a benzedeira não mata a cobra. Pressente que aquilo era “catimbó” de uma mulher invejosa e reza o bicho para ele voltar pra quem tinha mandado. E assim foi feito. Já eu ouvi desse jeito que contei.
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Verdade? Mentira? Quem o pode saber. Só sei que, nas minhas idas a Minas, ouvia sempre contar que cobra não pica mulher grávida e que se deve ficar atento na hora de dar o seio para os filhos. Pode ser uma história “mineiral”. Mas, como se costuma dizer: “o povo aumenta mas não inventa”.
M.S.
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Na Rádio Antigas Ternuras você está ouvindo “Um violeiro toca”, na voz de Almir Sater.
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18 comentários:
Marco, aqui no interiorzão de Minas onde vivo, minha avó contava uma coisa parecida com isso. Eu era criança e morria de medo, e durante muito tempo, eu não dormia sem antes olhar debaixo da minha cama.
Hoje, 38 anos depois, não acredito mais nisso, claro, mas morro de medo de cobra, (no bom sentido, claro)mas se cismo, ainda olho debaixo da cama.
É melhor prevenir né, mesmo não estando amamentando. *risos
beijo grande
Marco,
história incrível que sendo lenda ou não arrepia, imaginei o pobre bb magrinho sugando o rabo da peçonhenta, que horror.O medo faz o povo aguçar a imaginação.
Muito bom seu texto,todos temos alguma história pra contar.
Lindo dia querido,
beijossssssssssss
Adorei as imagens, lindas telas.
beijossssssssss
Querido, nada a ver com seu texto... Mas, "O Corte" é demais!!! Viva Gavras!!! Beijos.
Marco..me senti sentadinha ao lado do fogão a lenha, tomando um café recém passadinho e com olhos esbugalhados a ouvir esta história...
Minha mãe contou-me inúmeras histórias semelhates a essa, eu adorava..rs
Ahh como adoro isso tudo!
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Grande abraço querido Marco!
Oi Minino do Rio!
Eu ouvia muito esta histórias e outras assim. Cobras não tomam leite, mas tenho a impressão que fazia parte do costume dos "educadores" o ensinamento pelo medo. As matronas antigas deviam fazer isto para que as mulheres mais novas não cochilassem ao amamentar e descuidassem do neném. Mesmo assim, um dia, minha avó contava que amamentava meu pai e meu avô descobriu uma cobra pequena, enrolada debaixo do fogãozinho de brinquedo de minha tia. Eles mudaram até de casa, e meu pai mamou até os cinco (eu disse cinco) anos!
Você é o carioca mais mineiro que eu já vi!
Um abrássumbêjumpedássdiquêju!
Isso aqui é confraria mineira ou estou enganado? Marco, ressuscitei. Dê-me sua valiosa opinião sobre meu texto lá no blogteco, por favor. Ah, que venham mais "causos".
Q post fofo..delicioso de ler, primo.
achei mto engraçado qdo falou criar os catarrentos..aahhaha
ainda bem q a cobra só bebia o leite e não mordia o neném...acho q ela não devia ter morrido não..e sim levada pra mata.
obs.: não esqueça que amanhã é dia de colocar no post comunitário no ar.
beijosssssss
que meeeeedo dessa cobra, credo! morro de nojo...
uhaahauhahu olha... adorei o RUMUAL ÉKISSA. auhahauha de onde esse povo tira tanta criatividade?!? uhauhauhah um bjooo!
Ê coisa boa que não volta mais... melhor que isso , só acompanhado de uma morena brejeira e numa roda de violão com os cumpádi!
Um abraço!
Linda noite meu querido,
beijossssssssss
Mano Marco:
Tua prosa cativante novamente se me emaranhou.
Hipóteses assim,narradas com tua pena magnética faz um causo se tornar tanto mais sólido dentro da crendice ao quebranto ainda contumaz pelo Interior brasileiro (aqui em Pernambuco,o "Papo-Figo" ainda sublinha medo nos infantes dados a mais atual tecnologia.)
O mistério de Deus ter criado os ofióideos é inadivinhável tanto quanto a Morte será sempre um enigma.
Mas Ele sabe o metal e sabe a escória,as luas que foram e as que têm sido,e,vai daí,talvez as tenha feito para que houvessam metáforas da desamplidão.
Tu já sabes,né?... Gostei imenso do "vosmicê" e do "lusco-fusco" redivivos. Oh língua arretada!
Bom dia,meu lorde tropical.
Êta, que vosmecê é cidadão do mundo, daqueles que descobre os causos bons que têm embaixo de cada móvel!! As referências são excelentes: "médico era que nem saci-pererê"... rs... Tenha uma boa sexta-feira!!
Marco, o reconto da tradição oral é uma arte mesmo. A história da cobra que bebia leite ficou ainda mais saborosa no seu texto. Com dicção de fogão a lenha e noite chuvosa. Com relação ao comentário da vendetta ... não consigo ficar calada. Mas é claro, querida bióloga, que no mundo simbólico cobras bebem leite. E ao fazê-lo, nos oferecem uma imagem tão plena de significados, tão bela em seu aparente absurdo que chega a ser pecado lembrar que cobras reais só comem ratinhos ... rssss Marco, beijo você.
ui. nunca ouvi estória mais esquisita. ai ai ai. odeio cobras.
no discovery dia desses apareceu uma sucuri morrendo num lago secando...eu vibrei. ela levantou a cabeça agonizando e abriu a boca como se fosse um hipopótamo e eu amando a sua agonia..rsrs
beijo. e beijo.
Todo mito, ou lenda, tem por objetivo reforçar um comportamento ou reprová-lo. No caso deste, está na cara que o objetivo é combater o ato de "dormir" durante a amamentação, ou, melhor ainda, uma pequena sugestão para que as mães tivessem um período maior de descanso, após o nascimento de seus guris.
Cês gostam de um causo, daqueles de se ouvir na beira do fogão de lenha, não é? Depois conto mais.
Querida Suzy: Em Minas se conta muito esta história. Daí, o rotetirista do filme Tapete Vermelho aproveitou e tacou ela lá. Muita gente vai pensar que foi ele quem inventou essa história da cobra que mamava. Se eu morasse no interiorzão, também tomaria as minhas providências. Mas num condomínio, em pleno Rio de Janeiro, não tem perigo de cobra entrar aqui em casa. O perigo é o bicho homem, muito mais venenoso que a pobre serpente.
Doce Marcinha: Você tem toda razão. Quando eu era pequeno e ouvia essas histórias, ia dormir com um medaço que vou te contar. mas até hoje gosto de histórias de terror, vai entender...Que bom que você gostou. Quanto às imagens, dá um trabalhão procurá-las na internet, mas o resultado sempre compensa.
Querida Isa, a Bela: Já te respondi no seu blog, meu anjo.
Ê, Roby...Coisa boa, né não? Ah, esse carioca aqui tem uma saudade do matão! Daquele tempo em que eu ouvia histórias como essa, com olhos esbugalhados e a boca cheia de broinha de fubá mimoso...
Minha doce Claudinha: A gente sabe que cobra não é mamífera, mas não duvido das coisas fantásticas que acontecem no interior. Pelo contrário: adoro ouvir estes causos! Imagino que o seu pai tenha uma saúde de ferro. Conheci uma pessoa que mamou no peito até os seis anos e aquela criatura não ficava doente de jeito nenhum!
Sou carioca mineiro? Ré, ré, ré...Quando estive em Porto alegre e participava de rodas de chimarrão, me chamavam de "cariúcho". Em São Paulo, o povo diz que eu tenho mais de caipira que de carioca. E se for ao Nordeste, volto de lá falando com sotaque. Acho que sou um cidadão do Brasil. Adoro esse povo e suas histórias...
Grande Lúcio: Rapaz, de fato, tem bastante mineiro aparecendo por aqui. E isso é ótimo, não é? Sou de família mineira por parte de mãe. Logo, corre doce de leite em minhas veias...
Já fui lá no blogteco e já comentei.
Querida Micha: Que bom vê-la aqui! Pois é. Minha mãe e minha avó chamavam criaça pequena de "catarrento". E eu acabei e adotei o apelidinho "fofo" para os bebês.
Eu também não gosto de ver matar bicho. Se bem que essa cobra bem que merecia uma foiçada...
Post comunitário da Família Morcegos? Não estou sabendo de nada!
Querida Yumi: Cê tem medinho de cobra, é? Huummm...sei...Rá, rá, rá... E Rumual Ékissa, querida! O povo brasileiro é um espanto para inventar coisas...
Pois é, compadre Bruno...E tem gente que não dá valor a essas coisas!
Mano Paulinho: Eu ouvi as histórias do "Papa-Figo" aí em pernambuco. E um dia, farei um post sobre "o velho do saco", o meu grande terror de infância.
As cobras têm função, amigo. Elas fazem parte de uma cadeia alimentar importante. Pela falta delas, os ratos proliferaram no mundo.
E você tem razão. A última flor do Lácio é boa por demais de se ouvir e se ler.
Querida Ana Carlinha: Sempre gostei de ouvir histórias. No fundo, estava me preparando para me tornar um contador de histórias. E se você gosta, aí mesmo é que eu continuo.
Querida Vendetta: Huum...Depois de te ler, vi a resposta da Fugu. Parece que está 1x0 pra ela, né? A gente sabe perfeitamente que cobra não mama. Mas o povo, por seus motivos, cria histórias como essa e aí o realismo fantástico se torna muitíssimo mais interesante. Como disse, John Ford, "se a lenda é melhor que o real, imprima-se a lenda". Mas adorei saber que você é bióloga. E que entende de cobras...ré, ré, ré...
Mas, olha, não é só a píton que come gente, não. Eu recebi pela internet, fotos de uma sucuri com um rapaz no bucho.Depois, abriram a barriga da miserenta, e...Credo! Vamos pular essa parte!
Querida Fugu F.: Nada a acrescentar ao seu comentário. Só que eu me sinto feliz por ter voc~e por aqui escrevendo coisas tão legais. E recomendo a todo mundo te visitar lá no seu blog e se deliciar com seus escritos.
Oi, queriDira: A história é esquisita, mas é fascinante, né não? E, olha:eu também não gosto nem umpouquinho de cobras. lembro de uma vez que estive em Manaus e fiz um daqueles passeios pra turista. Teve uma hora em que apareceram trocentos índios carregando animais para a gente tirar foto. Eu apareço nas fotos segurando jacaré, preguiça, tucano, arara...mas quando um curumim me ofereceu uma cobra pra tirar foto, agradeci mas recusei. Com cobra não tem acordo. mas não gosto que fiquem exterminando as bichinhas. elas tem função no planeta. Com a matança indiscriminada de cobras, os ratos fizeram a festa. E por causa dos ratos e da peste negra que eles trazem, um terço da população da Europa desapareceu. O número de mortes por picadas de cobras é ínfimo. Mas, continuo querendo distãncia dessas bichas...
Grande Evandro: Provavelmente você está certo. por trás de uma lenda sempre há uma explicação plausível. um dia desses, conto a história porque se acredita que tomar leite e chupar manga faz morrer.
Valeu, moçada! Abraços e beijinhos e carinhos e ternuras sem ter fim.
Pois, pessoal,eu tenho CERTEZA de que há muito de verdade nessa história de "cobra mamando". Ocorre que meu falecido pai - homem do campo - nunca contou uma piada nem disse uma mentira - nem de brincadeira. E... ELE VIU (ninguém lhe contou) e matou um cobra que mamava numa vaca dele, no interior de S. Francisco de Paula-RS. Talvez ela não "mamasse" propriamente mas estimulava a teta e a vaca soltava o leite. Ele, temendo que o réptil picasse a vaca, esperou que ela desenroscasse da perna da vaca para matar. Contava do leite que derramou no campo. Por que - pergunto - meu pai mentiria isso?
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