terça-feira, maio 16, 2006

Acontecências


Um original de Marco Santos

Personagens: Doutor
Mulher
Homem

DOUTOR – A senhora se sente, por favor. Nome?
MULHER – Maria.
DOUTOR – De quê?
MULHER – Couto
DOUTOR – Idade?
MULHER – 32.
DOUTOR – Filhos?
MULHER – Não, senhor. Ele dizia “filho pra quê? Para a terra comer?”
DOUTOR – A senhora conte a sua história, faz favor.
MULHER - Tem coisas que acontecem na nossa vida que a gente não sabe se é Deus ou o diabo que atenta. Não que eu não gostasse dele. No início gostava, mas gostava mais. Depois desgostei. Foi aos poucos. Não sei dizer se foi depois de cada surra que ele me dava, algumas com mão fechada. Ou se foi pelo cheiro de perfume barato que ele trazia toda noite junto com a mancha de batom na cueca que ele nunca quis explicar. Eu dizia: “Olha, põe tento nessa tua vida...” E ele ria, debochado, me mostrando o dentinho de ouro no canto do riso. Aí foi me dando uma raiva, mas uma raiva...(PAUSA)
Botei as crianças pra dormir mais cedo e fiz. O que tinha de fazer. E pronto.
DOUTOR – A senhora botou água fervendo no ouvido dele enquanto ele dormia.
MULHER – E usei um funil para não esperdiçar.
DOUTOR – A senhora pode ir. Ô Melo! Acompanha a senhora! O próximo!

HOMEM – Sou eu.
DOUTOR – Nome?
HOMEM – Severino de Jesus.
DOUTOR – Idade?
HOMEM – 42 anos.
DOUTOR – Casado?
HOMEM – Ajuntado com uma criatura.
DOUTOR – O senhor conte a sua história...
HOMEM - Ninguém tem que se rir da minha condição por que a minha história é séria. Sou tão filho de Deus como é qualquer filho da ...
DOUTOR – Senhor Severino! Olha o palavreado!
HOMEM – O senhor adesculpe...Sou tão filho de Deus como é qualquer desgracido que come três, quatro vezes por dia e olha por riba da gente como se o sangue dele não fosse vermelho como o meu. Sempre fui arreliado com essas injustiças. O senhor pode nem saber mas eu digo: Quando a barriga ronca, a cabeça se estremece, os pensamentos ficam zunindo, a gente não tem tenência. Tem gente que mata, que faz maldade por um punhado de feijão, um naco de carne. Mas eu, não. Nunca matei ninguém. Quem mata é Deus. Eu só faço o furo.
DOUTOR – Sim, mas...o furo que o senhor fez no homem o transformou em um cadáver.
HOMEM – Se morreu é porque Deus levou.
DOUTOR – Muito bem, senhor Severino...O senhor acompanhe o rapaz. Ô Melo! Pode levar o Seu Severino. Hoje vai ser um daqueles dias...
M.S.
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Outra radionovela que escrevi há priscas eras. Na verdade, fiz adaptações para Rádio a partir de duas cenas de uma peça que escrevi ao tempo em que fazia escola de Teatro, onde as encenei numa das aulas.
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Na Rádio Antigas Ternuras você ouve Luiz Gonzaga, o grande Lua, com “Seu Delegado”.

18 comentários:

Luma Rosa disse...

Fragmentos de uma rádio novela, fragmentos de vida que podem até estarem longe da nossa realidade, mas que faz parte da realidade remota (ou atual) de delegacias do norte do país. Já leu Noite Grande de Perminio Asfora? É bem nessa linha e iria adorar.
Gostei da homenagem e da história de vida de sua mãe no post anterior.
Boa semana! Beijus

Fugu disse...

Delegacias e corredores de Fóruns são as franquias que o diabo criou quando decidiu terceirizar o inferno. Tudo ali dói. E dói pra tudo quanto é lado. As duas novelinhas são sensacionais. Quase dá para ouvir o chiadinho da transmissão radiofônica ao fundo ... rssss Ou serão as brasinhas do capeta? Beijo chiado da Fugu.

Anônimo disse...

Ao entrar já comecei a ouvir o forrozinho e vi que a coisa tava boa aqui. *risos.
Sabe, amo esse jeito simples desse povo, têm uma sabedoria que poucos conseguem perceber, ou aceitar.

Muito linda sua radionovela. Que personagem vc fez Marco, o Doutor, o homem ou a mulher?
beijão grande.

Anônimo disse...

AFF!
Cada um com seu momento né não?
Mas os dois com sentimentos em comum, raiva e coragem!!
Lindo dia [quase noite] meu querido,
Saudades de você,rs
beijosssssss

Bruno Capelas disse...

Hehehehehehe... demais , demais , demais! Só faltou o advogado chave de cadeia... :D Já pensou que beleza seria se as delegacias fossem assim?

Um abraço!

Anônimo disse...

eui adorava as radionovelas...adorava. mas aqui tinha um programa policial que se chamava "dramas e comédias da cidade" onde eles encenavam o noticiario. era muito ruim, mas dávamos boas gargalhadas. Vc me lembrou isso. saudade de tu. meu carinho, e muita luz. gosto quando o ator e dramaturgo escrevem. beijo.

Bruno Capelas disse...

Simples... o Sérgio Mendes faz música brasileira pra gringo. Manja "Made in Brazil For Export?". Não me agrada... os gringos acham ele maravilhoso , mas pra mim é repetição do que o Jorge Ben e outros caras menos conhecidos faziam.

Um abraço!

Anônimo disse...

hehehe

Nunca ouvi uma radionovela ( hehe, não é do meu tempo, oras...rs)
mas tenho "lido" por aqui...e não é que isso é muito bom.
Sabe, volta um pouco da inocência de antes...( tudo bem...tem umas mortezinhas nestas duas...rsrs, mas)
ah...
adorei querido
( a propósito, acho que o da água quente não morreu não né?

se a moda pega...

beijo

Anônimo disse...

MARCOS!

Visitei ontem seu blog, não resisti e retornei hoje.. Gostei muito dessa novela.. tinha tudo para teatro.

Olha é bom saber que no Brasil temos um Marcos Assim...

Beijos

Soninha

Anônimo disse...

Mano Marco:

Bravos pela inventiva,mestre!

Adoro textos assim,enxutos,que nos faz vislumbrar,às mancheias,os personagens inteiriços de uma tacada só.

Que passagem esta:

"Nunca matei ninguém. Quem mata é Deus. Eu só faço o furo."

O que me fez recordar daquele disco gravado ao vivo por Gonzagão e Carmélia Alves,aí no Rio,no saudoso "Projeto Seis e Meia".

Lá pras tantas,num "pout-pourri",ela,com um sotaque carioquíssimo,ele,com sua pronúncia característica de sertanejo,inicia um diálogo com o Rei do Baião:

-(...) [Não recordo agora o início da coversa]

- (...)Furei não,Carmélia,furei não! Dei só um risquim...

- Um rischquiiinho?... Mas o homem mooorreeeeu?...

- É porque o quicezim tava meio enferrujado - e o homem era morredôôô...

Em tempo: que nome mais biblicamente bonito o de tua mãe!

Um gande abraço pernambucano pra "vosmicê" e Dona Ruth!

Anônimo disse...

Que lindo, lindo lindo!!!

Anônimo disse...

Ei...gostei dela! E me diz, não seria adaptável para uma peça?

Abraços e bom dia!

Júnio disse...

Sinceramente enquanto lia a segunda estória estava lembrando justamente dessa música do véio Lua "esse cabra é morredô".
Muito bom!
Abraços.

Claudinha ੴ disse...

Olá Marco...
Esta idéia de água quente no ouvido, sem desperdício é ótima, vou anotar no meu caderninho de idéias. Aqui ninguém chega perto de mim quando estou com uma faca na mão, não sei por quê... Mas eu sempre procuro ver o outro lado, eles não têm lá a sua razão? Justificaram direitinho os seus atos...
Olha Minino, eu adorei as radionovelas. Precisa qualquer dia fazer uma com a voz ao vivo para ficar mais ainda no clima, por que sei que a interpretação é a alma de um texto... E aí, nada melhor que o próprio autor, não é? Um beijão!

Anônimo disse...

Ah, Marco!
Geniais os dois trechos!
A mulher, com sua inocência e humildade, mostra toda a coragem reunida em longas sessões de humilhações e espancamentos.
O homem, com sua aparentemente fria sinceridade, mostra o quanto parece normal colocar-se no lugar do justiceiro, pois quem leva é Deus...
Tem mais?

Abração.

Anônimo disse...

Beijo,beijossssssssss
Boa noite meu querido.

Anônimo disse...

oieeee,to rindo aqui ,essa historia de agua no funil no ouvido ,ninguem merece né,fala sério,legal só assim pra alegrar um pouco ,com toda essa rebelião e panico nas ruas,queremos é pas e alegrias ,desejo uma linda quinta feira, adoro seus contos,bjsssss

Marco disse...

Não é que o povo gostou mesmo????

Querida Luma: Não li este livro que você citou. Imagino que seja bem bom. Fico contente por você ter gostado da minha novelinha.

Querida Fugu: As delegacias dos grandes centros são mesmo sub-sedes do inferno. Mas a da minha novelinha é mais pro interior, onde não há super-lotação, nem criminosos de alta periculosidade. Mas você está certíssima na sua imagem.

Querida Suzy: Ré! Ré! Ré!...Muito engraçadinha...Ré! Ré! Ré!...Bem, como eu sou o autor e dirigi a cena na escola de Teatro, é como se eu fizesse todos os papéis, não é? Na minha adaptação para radionovela, não fui escalado. Gosta de um forrozinho, heim?

Minha doce ex-vizinha e sempre pra sempre amiga Marcia: Violência contra a mulher é assunto cotidiano. Infelizmente. E violência do Homem contra o Homem também já virou banal. E bota infelizmente nisso.

Grande Bruno: As delegacias das grandes urbes com certeza não são desse jeito. E no interior nem tem o tal advogado de porta de cadeia. Na verdade, tem interiorzão que nem preso tem!

Querida Dira: As radionovelas e as dramatizações são minhas queridas antigas ternuras. Eu ouvi muitas quando era moleque. Depois, já grandinho, tive a chance de gravar algumas para uma radio comunitária como ator e escrever outras também. Tenho muitas saudades deste tempo.

Doce Claudia: Nunca ouviu? Ah, meu bem, você não sabe o que é bom!... Sim, teve mortes nesta minha. Mas não foi nenhuma chacina como a gente vê no noticiário. E o homem é o lobo do Homem, não é? A espécie vive se matando desde o tempo das cavernas. Que bom que você gosta das minhas novelinhas...

Querida Soninha, que põe "S" indevidamente no meu nome: Que coisa boa tê-la por aqui, no meu velho bazar de emoções. Venha sempre que quiser, puxe uma cadeira e se sirva de Crush e Grapette na geladeira Frigidaire.

Mano Paulinho: Rapaz, eu estive nesse show, no João Caetano. Não me lembro exatamente dessa música. Mas ele foi gravado, não é? Eu conheço a Carmélia. Já estive na casa dela, gravando uma entrevista. Sempre vou nos shows do grupo "As Cantoras do Rádio", sou amigo de todas.

Gostou Ana Carla? Que ótimo!

Guilherme: Hum, gosto quando você aparece por aqui. Essa cena nasceu Teatro e depois eu a adaptei para rádio. Mas pode voltar a ser Teatro sem problemas.

Doce Vendetta: Eu gosto mais ainda quando vejo você por aqui. Vamos trocar links? Eu adoro os seus escritos...

Grande Júnio: Oxente! Tu lembro da música, é? Apôs...Então é por que é!

Minha doce Claudinha: Essa idéia de jogar água fervente no ouvido do marido era o que eu mais ouvia nos meus tempos de moleque. Na localidade onde eu morava, tinha muita gente humilde. Volta e meia tinha arranca-rabo na vizinhança. O marido chegava bêbado em casa, ameaçava dar uns tapas na mulher, encher a lata dela de alegria e aí ela vinha com um "vem! Vem que eu espero você dormir e jogo água quente no seu ouvido!" Nunca soube de nenhuma que tivesse feito isso. Mas a ameaça costumava surtir efeito.
Eu até queria saber se a rádio comunitária onde a gente gravava as novelinhas ainda tem as fitas. Ia ser legal ouvir de novo aquelas gravações...

Leagal que você gostou, Claire.

Grande Zeca: Se tem mais? Ô, se não tem... Já postei vários aqui. De vez em quando sempre coloco unzinho por aqui, já que os meus milhares de leitores disseram que gostam. Em pucas palavras você analisou com perfeição a história. Você é bom, heim?

Querida Angel: Bem...Ninguém deveria jogar água quente no ouvido de ninguém, mas que tem marido merecendo, ah isso tem...
Você gosta dos contos e eu adoro quando você vem aqui lê-los...

Valeu, amigos! Abraços e beijinhos e carinhos e ternuras sem ter fim! Vocês são o grande barato do blog Antigas Ternuras!