"Então o Senhor fez chover do céu enxofre e fogo sobre Sodoma e Gomorra; destruiu essas cidades e toda a planície, com os habitantes das cidades e a vegetação do solo. (Gênesis 19:24-25)"
"Então Deus disse a Noé: - Para mim, chegou o fim de todos os homens, porque a terra está cheia de violência por causa deles. Vou destrui-los junto com a terra. (...) Eu vou mandar o dilúvio sobre a terra, para exterminar todo ser vivo que respira debaixo do céu: tudo o que há na terra vai perecer". (Gênesis 6: 13-14 e 17)
Não sei exatamente o que as cidades de Sodoma e Gomorra fizeram ou o que o planeta andou fazendo no tempo de Noé para ser castigado por Deus daquela forma, mas seja o que for, o mundo atual está bem pior. Acho melhor tirar a roupa do varal que vem fogo aí. E vamos preparar os barcos, que as águas vão rolar!
Este texto funciona melhor se for lido ao som de “Podres poderes”, do mestre Caetano Veloso. Portanto, som na caixa didjêi!
*
(Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais)
*
Que os Criacionistas não me ouçam, mas a Ciência tem como certo que o Homem, como se conhece hoje, se originou na África. Aliás, tem muito defensor do Criacionismo que aceita o continente africano como local provável do Éden, o Paraíso onde Adão e Eva foram gerados. E quando foram expulsos de lá, ainda no que seria a África, viveram e geraram o princípio da humanidade.
Se a nossa gênese está no Continente Negro, o Homem está cuspindo no berço que o gerou. Aliás, não é de hoje. Tem é tempo que povos militarmente mais poderosos tratam os nativos africanos como lixo.
E é isso o que vemos em dois filmes recentes, que estão em cartaz entre nós. Do primeiro, o “Senhor das Armas”, já comentei aqui. É sobre o mais recente, “O Jardineiro Fiel”, que eu gostaria de tecer alguns comentários agora.
*
Pessoalmente, eu traduziria o título original “Constant Gardener” (USA, 2005, dir. Fernando Meireles) como “O Jardineiro Persistente”. Acho mais apropriado. No filme, Ralph Fiennes faz o personagem “Justin Quayle”, um funcionário do Alto Comissariado inglês, casado com “Tessa Quayle” (Rachel Weisz), voluntária ativista, que trabalha na África. Ela suspeita de que algumas mortes de quenianos foram causadas por uma medicação nova e começa a investigar. Nessa investigação, mexe com interesses de empresas poderosas, o que acaba lhe trazendo problemas.
O roteiro é baseado no livro de mesmo nome, escrito por John Le Carré, famoso autor de best sellers, especialmente ligados a espionagem.
Ah, então, a história é ficção? Sim, é. Mas será que escrever sobre a possibilidade de grandes laboratórios usarem africanos como cobaias na experimentação de novos remédios é um desvario? Não, não é.
*
No filme, uma determinada empresa multinacional de medicamentos prevê um futuro surto epidêmico de tuberculose no mundo, que nenhuma penicilina, nenhuma vacina BCG vão segurar. Para isto, criaram um poderoso antibiótico. Mas, e se ele tiver efeitos colaterais? Bilhões de dólares estavam em jogo, não se podia facilitar. A solução foi contratar uma empresa que testasse o medicamento em seres humanos sem condição de processar o laboratório, ou seja, africanos do Quênia. Um dos personagens do filme diz: “afinal de contas, eles estão condenados a morrer cedo, mesmo”. Não deixa de ser uma lógica insofismável e pragmática, embora mande a ética para o alto dos mastros das caravelas. (Parêntesis cultural. Os portugueses chamavam aquele ponto de observação no cume do mastro principal das caravelas de “caralho”. Quem ficasse naquele cesto, estaria debaixo de sol causticante ou chuva pesada, além de balançar mais que em qualquer outro ponto do navio. Por isso, quando algum marujo se comportava mal, o capitão o mandava: “vai pro caralho!” Não acredita? Então clique aqui. Antigas Ternuras: um blog que se preocupa com a sua cultura geral. Fecha parêntesis).
*
O pior é que o tal remédio tinha mesmo efeitos colaterais. Muita gente morre, mas seus registros desaparecem - como se eles não existissem - e são enterrados em valas clandestinas, sem que ninguém, nem a família, soubesse. Mas os africanos não protestavam? Eles nem sabiam que estavam sendo usados. Se a gente pegar os indicadores sociais da África Subsaariana – que, comparadamente, fazem o Piauí parecer a Noruega – vai ver que a expectativa de vida lá é baixíssima. Atendimento médico é algo que poucos verão na vida. Aí, quando aparece uma empresa que resolve instalar um posto de saúde no meio da savana, quem está lá não vai pensar duas vezes na hora de tomar o que eles recomendam. Alie-se a isto alguns milhares de dólares irrigados na mão de governantes corruptos, que fecham os olhos para o que acontece por lá.
*
(Ou então cada paisano ou cada capataz
Com sua burrice fará jorrar sangue demais
Nos pantanais, nas cidades, caatingas e nos gerais)
*
Pergunto novamente: isto é ficção descabelada?
Recentemente, um amigo deste blog apresentou estatísticas dando conta de que a pobreza desesperadora no mundo estava diminuindo. Dados da Scientific American Brazil indicam que em 20 anos, o total de desesperadamente pobres no mundo caiu de 1,5 bilhão para 1,1 bilhão, com queda mais acentuada na Ásia. Baseado nesses números, ele prevê a redenção da pobreza em 2050, por conta do “progresso científico e tecnológico contínuo aliado à acumulação auto-reforçadora da riqueza. Forças de mercado e livre comércio: esta é a receita.”
*
Hum... o sistema capitalista preocupado em sanar as desigualdades sociais do mundo? Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial. E essa nova ordem globalizada precisa, mais que nunca, que haja exploradores e explorados, senão a economia neoliberal não se desenvolve. Este mesmo neoliberalismo que já afirmou que a África está fora do jogo, que ela é questão de assistencialismo para a Cruz Vermelha, ONU. Unicef e outras do gênero.
E aí voltamos para o filme: a África está realmente fora do jogo? Ou ela entra como bucha para o canhão das economias mais fortes estourar como um trovão?
*
Em determinada parte do filme, vemos dirigentes das empresas responsáveis por aquela matança, contritos, rezando na igreja para Deus. Eu fiquei na dúvida: para que Deus eles estavam rezando? A propósito: Para que Deus homens-bomba rezam quando partem para explodir com pessoas, crianças que nada tem a ver com política de governo? A qual divindade os traficantes se referem quando dizem “Fé em Deus” e saem armados para o confronto com outras facções? Em nome de que Deus o presidente da nação mais poderosa do mundo manda tropas para milhões de quilômetros de distância com o intuito de acabar com ameaças que ele mesmo inventou?
*
(Será que será que será que será
Será que essa minha estúpida retórica
Terá que soar, terá que se ouvir por mais zil anos?)
Como é que é, Caetano?
(Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Morrer e matar de fome, de raiva e de sede
São muitas vezes gestos naturais)
M.S.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
5 comentários:
Marco:
"Não poderia silenciar em respeito ao seu transe",e,num êxtase,dizer-te que teu estilo é feiticeiro.
Sob os céus do mundo ainda existem pessoas como Você,que cultivam estupores!
Pelo que li aqui,o O Jardineiro Fiel nos incita a fugir para um espaço onde haja um respeito mínimo e não o elogio da sordidez.
Acho infinitamente melhor ler resenhas (com ponto de vista,frise-se) sobre filmes no ANTIGAS TERNURAS,pois elas não engendram as impessoalidades profissionais.
E o "parêntesis cultural" foi de lascar o cano,como dizemos por aqui no dialeto local.
Realmente,acho que pouquíssimas pessoas sabiam da origem da palavra que no Brasil foi premiada como insultuosa,já que passou a ser sinônimo da "parte polêmica" do sexo masculino.
Continue assim,meu peralta das palavras.
Uma segunda-feira sem atropelos é o que desejo a ti e a todos os que compõem este reino assombrosamente lúcido & lúdico.
PS: obrigado pelo teu e-mail sobre a minha recente croniqueta. Foi-me impossível desperdiçar o teu parecer; e o colei no Mural de Recados do ZOOM.
Apresndendo a não ser óbvio contigo,faço uma emenda ao post anterior: leia-se apenas "parte polêmica.
Até amanhã...
Está ouvindo os aplausos? Sou eu aqui batendo palmas para este seu post. Agora, onde a Scientific American recolheu dados para a pesquisa citada no texto? Na Escandinávia? Na Suíça? No Canadá? Certamente não foi na África ou no Brasil. Iniciei minha resenha sobre "O Jardineiro Fiel" justamente lamentando o sofrimento do continente africano nas mãos dos inescrupulosos interesses do capital. Já leu? Provavelmente não, né? Afinal, o Weblogger não tem deixado. Com exceção de uma breve trégua entre ontem e uma parte do dia de hoje, o sistema está fora do ar desde a quarta-feira. Estou pensando seriamente em fechar as portas do Cinelândi@ por lá e reabri-las em outra freguesia. Quem sabe eu não me torne seu vizinho no Blogger... Quanto ao Google Earth, tentarei baixar e instalar mais uma vez. Caso não dê certo, aceitarei a ajuda que ofereceu. De todo modo, já deixo aqui meu agradecimento. Com essa encerro este comentário, até porque nossa minissérie favorita está para começar. Grande abraço!
Estes meus amigos são um barato...
Obrigado, caro Paulinho grande Patriota, que traz no próprio nome a sua essência. Independente do meu texto, recomendo que assista ao Jardineiro Fiel. É um ótimo filme e uma ótima oportunidade para se indignar. Ah, essa natureza humana!...
E para o seu xará e meu professor de template: estou tentando visitar o seu blog (e o da doce Helena)não é de hoje e não consigo. Acho que você deveria fazer como o pernambucano Theo, do excelente "Museu de Tudo", que se mudou da mala e cuia para o Blogger. Esse provedor de vocês é de lascar o cano! (Viu lá, como eu aprendo rápido Paulinho grande Patriota?).
Quanto à série Roma, o episódio de ontem foi meio morno. Na semana que vem, o couro vai comer entre as duas legiões de César e as dez de Pompeu. À propósito, você está assistindo à série "Mandrake"?
Vi mesmo,Marco: Você é um zás-trás da retenção.
E tem mais uma que esqueci: Caetano Veloso é dos meus desde priscas eras - e "Podres Poderes" idem.
Obrigado pelo teu plá no Muralzinho...
Postar um comentário