quarta-feira, maio 04, 2005

Direto do meu guarda-louças

Há alguns dias, li nO Globo, na coluna do Joaquim Ferreira dos Santos, uma crônica sobre "espinhela caída". Talvez você que esteja me lendo não saiba o que diabos vem a ser isso. O Joaquim lembrou bem que esta era uma "doença de suburbano". Eu vou mais além: De morador da periferia, também. Mas atenção, muita calma nesta hora: não há nenhum tipo de preconceito no comentário Joaquim ou no meu. Espinhela caída dava (acho que não dá mais...) na criançada do subúrbio e do Grande Rio (onde me criei) por fazer parte daquela cultura. Como jogar bola de gude, soltar pipa, rodar pião, comer goiaba no pé, jogar futebol em campinho de várzea, brincar de pique-bandeira, carniça, garrafão, pular corda...Vocês entenderam, não é? Eu não consigo imaginar um morador de Ipanema, do Flamengo e arredores indo numa rezadeira para rezar espinhela caída. Como não imagino uma criança de lá jogando búrica em quintal de terra.
Esclarecimento feito, passemos à espinhela. O que será, com mil tubarões, espinhela caída? Eu, que segundo minha mãe e minha tia, tive muitas vezes, não tenho a menor idéia do que seja. Suspeito que tenha a ver com o estado de magreza absoluta que as agitadas crianças do meu tempo viviam. A gente não tinha videogame, via pouco televisão, daí, estávamos sempre correndo, brincando, agitando. Acho que por isso o pastel e o cachorro-quente da cantina da escola não viravam gordura no nosso corpo. Queimávamos aquilo tudo em uma hora de pique-tá.
Sei que, de tempos em tempos, a minha mãe ou a minha tia Avelina, que morava em Piedade e com quem eu cheguei a passar uns tempos, me olhavam com olhos críticos e diagnosticavam: "espinhela caída!" Daí, a minha tia falava: "Marquinho, vai chamar a Dona Maria!"
Era a rezadeira da vila em que morávamos, na Rua Padre Nóbrega, 494. A casa da minha tia era a 4, ou "IV", já que os números eram escritos em romanos. A da D. Maria era a I. Eu adorava ser acometido pela tal espinhela caída. Justamente para ser rezado pela Dona Maria e ter que ir na casa dela para chama-la. Lá, morava a sua neta, Ângela, um de meus amores infantis. Eu tinha uns 7 anos. A Ângela, uns 13. Já tinha até peitinho. (Imagino a matrona em que ela deve ter se transformado...)
Pois bem. Eu ia lá, chamava a D. Maria, via a minha paixonite, e voltava para casa. Logo em seguida, chegava aquela velha senhora, com um galhinho de arruda nas mãos. Eu ficava em pé, diante dela, ela começava a me rezar. Murmurava umas palavras que eu não conseguia distinguir, sempre me cruzando com a arruda. "Vira de costas". Eu obedecia. Ela fazia a mesma coisa que tinha feito antes, com um detalhe: ela sempre começava a bocejar durante o processo de reza. Acredite se quiser: eu sentia um formigamento de leve pelo corpo, durante aquele ritual. Uma sensação gostoooosa... Depois de rezado, e, imagino, curado do ataque de espinhela caída, minha tia dava um dinheirinho para D. Maria, que se ia com passos rápidos, cuidar de seus afazeres na casa I, na casa da minha amada Ângela.
É possível que a ciência diga que a reza da D. Maria servia tanto como a colherada de Rum Chreosotado que minha tia me dava toda noite, antes de dormir ("para não ficar constipado"). Mas é inegável que tanto uma quanto outra faziam da minha infância um imenso guarda-louças de lembranças que eu, muito tempo depois, teria muito gosto em abrir. Nem que seja apenas para espanar o pó.
M.S.

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