Hoje, 28 de setembro, há exatos cem anos atrás, nascia, em New Heaven, Connecticut/USA, Alfred Gerald Caplin, que se tornou conhecido como Al Capp. Bem sei que a maioria dos meus 17 leitores estará se perguntando: “E nós com isso?”. Pois é. Para mim, é uma data importante. Al Capp foi o criador da história em quadrinhos “Ferdinando”, também conhecida como “A Família Buscapé”. E sabem por que é importante para mim? Eu comecei a aprender a ler nas tirinhas do Ferdinando no jornal O Globo. E depois, prossegui nos gibis dele, publicados pela Rio Gráfica (hoje, Editora Globo).
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Era a historieta favorita de meu pai. Lembro que ele chegava do trabalho já com o jornal debaixo do braço (na época, o Globo era vespertino, saía pouco antes das 18h). Ele tomava banho, jantava, botava o pijama e ia pra cama ler pacientemente o seu jornal, de cabo a rabo. Minha mãe ficava ao lado dele e adivinhem que se metia entre eles e ficava buzinando a paciência dos dois, perguntando tudo?
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Naquele tempo, a penúltima página do segundo caderno dO Globo era toda dedicada a tirinhas de quadrinhos: Fantasma, Tarzan, Nick Holmes, Mandrake, Pafúncio, Reizinho, Brucutu, Flash Gordon, Príncipe Valente...e Ferdinando! Meu velho dava boas risadas com a aventuras do pessoal de Brejo Seco, o vilarejo onde o moço vivia com sua mãe, Chulipa Buscapé, e seu pai, Lúcifer Buscapé, e mais muitos outros personagens maravilhosos, como a boazuda Dulçurosa Suíno, que vivia abraçada com um porco e cheia de moscas voando por cima, a Violeta, sempre perseguindo Ferdinando para casar, até que um dia conseguiu pegá-lo na corrida anual do Dia de Maria Cebola, o índio Gambá Solitário, Joe Cabeleira e vai por aí a fora.
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Como meu pai gostava, eu perguntava para ele do que ele estava rindo. E ele, com paciência de um relojoeiro chinês aposentado, me lia os balões e me dizia cada palavra escrita. Eu acabei decorando algumas palavras e sabendo todas as letras. Não demorou muito e eu já estava juntando uma letrinha na outra, perguntando o que não entendia.
Portanto, para mim, os quadrinhos do Ferdinando são ternuras para lá de antigas e muito queridas. Não posso deixar de homenagear quem me ajudou a despertar para a leitura.
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Al Capp era de família bem pobre, filho de imigrantes da Lituânia. E para piorar ainda mais a situação, quando o moleque tinha nove anos foi atropelado por um bonde e perdeu uma perna. Aquilo seria definitivamente marcante em sua vida.
Quando ele contava com 19 anos, descobriu a tira de quadrinhos Mutt e Jeff, de Bud Fischer. No que ele soube que o desenhista ganhava três mil dólares por semana com aquilo, resolveu tentar seguir seus passos e sair da merda em que ele e a família estavam atolados até o pescoço. Criou uma historieta, chamada “Coronel Gilfeather”, e a enviou para a agência Associated Press. Ele se deu bem, arranjou um emprego ganhando seus trocadinhos, mas ele queria bem mais.
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Seis meses depois, resolveu se mudar para New York e tentar a sorte. Por azar, ou melhor, por sorte, foi atropelado de novo. Não perdeu nenhum pedaço do corpo, e seu atropelador era ninguém menos do que Ham Fischer, criador dos quadrinhos Joe Sopapo. Fischer saiu do carro para ajudar Capp a catar seus papéis espalhados pelo chão e quando viu que eram desenhos acabou contratando-o como assistente. Ele ficou algum tempo com Fischer, mas ele queria bem mais do que ser um mero auxiliar. Criou uma historieta chamada “Li’l Abner”, onde um rapagão caipira vivia aventuras no interiorzão americano. Mandou os quadrinhos para o King Features Syndicate, que gostou, mas pediu que ele transferisse o personagem da roça para a cidade grande, com o que Capp não concordou. Ele tentou outro sindicato, até conseguir, em 1934 (há exatos 75 anos atrás), um contrato com a United Features. E estourou tanto nos EUA, como no mundo afora.
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Capp gostava de dar nomes absurdos para os seus personagens, a começar pelo próprio protagonista (“Li’l Abner” em inglês é “Pequeno Abner”, como chamavam o Ferdinando, um cara daquele tamanho, vejam só...). Era difícil até de traduzir. Tiveram que recriar em português toda a nomenclatura dos caipiras de Brejo Seco (Dogpatch, no original). Eu até creio que os tradutores fizeram um ótimo trabalho. Vejam só: Mammy Pansy Yokum virou “Chulipa Buscapé”; Lucifer “Pappy” Yokum era o “Lúcifer Buscapé”, Daisy Mae, virou “Violeta”, Moonbeam Mcswlne passou a ser a tal “Dulçurosa Suíno”, Lonesome Polecat e Hairless Joe, eram “Gambá Solitário e Joe Cabeleira”.
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Ferdinando herdou a sua força descomunal de sua mãe, Chulipa, e a ingenuidade de seu pai, Lúcifer, que era um moleirão covarde, de vez em quando tomando uns catiripapos da esposa. Aliás, só devia ter “ripa na Chulipa” quando o velho Buscapé passava o rodo na velha. Já até imagino ela gritando naquela hora do “vamuvê”: “Vem, Lúcifer! Mete fumo que o cachimbo está aceso!”.
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O grande barato nas histórias da Família Buscapé era a crítica que o Capp fazia do modo norte-americano de vida, da sanha destruidora do sistema capitalista, que devorava os excluídos, e até debochava com muito talento do macarthismo, a doutrina de caça às bruxas que perseguiu tanta gente sob a acusação de práticas comunistas. Brejo Seco era uma representação da América e eu diria até de vários lugares do planeta. O leitor ria daquelas aventuras sem talvez perceber que estava rindo de si mesmo.
Por sua capacidade de fazer rir criticamente, Capp recebeu elogios de ninguém menos que John Steibeck, autor de “A leste do Éden”. Steinbeck inclusive recomendou Capp para o Prêmio Nobel de 1953. Disse ele: “Para mim, só Cervantes e Rabelais souberam criticar tão causticamente e essa crítica ser aceita e divertir a tantos. Ele é o melhor escritor do mundo”.
Li’l Abner já foi desenho animado, filme com Buster Keaton (1940) e com Peter Palmer e Julie Newmar (a estonteante Mulher-Gato do seriado Batman) em início de carreira (1959). Foi musical na Broadway mais de uma vez e eu confesso que adoraria participar atuando em uma montagem brasileira da Família Buscapé.
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Muita gente diz que a invenção mais genial de Al Capp foram os Shmoos. Eram criaturinhas divertidas que se transformavam em qualquer alimento que a pessoa desejasse. Bastava olhar para eles com fome que eles alegremente viravam frango assado ou pernil. Davam ovos, leite e manteiga de graça.
Os shmoos se reproduziam facilmente e seriam capazes de acabar com a fome no mundo. Todavia, nas historietas, os capitalistas identificaram nos bichinhos os grandes inimigos do sistema e acabaram convencendo Ferdinando e os habitantes de Brejo Seco que eles deveriam morrer para que todo mundo voltasse a ser explorado como sempre aconteceu.
Essas historietas em pleno macarthismo fizeram muita gente ficar de olho atravessado para Al Capp.
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Ah... Saudades de ver meu pai lendo e gargalhando com as aventuras de Ferdinando... Por isso, aqui vai o meu muito obrigado a Al Capp. Ele morreu em 1979 (há exatos 30 anos), doente, entrevado em cadeira de rodas. Desde 1977 já não mais desenhava seus incríveis personagens que levaram um certo menino a começar a se interessar por leitura, e que posteriormente não parou mais, lendo tudo o que lhe cai nas mãos.
Deus te abençoe, Al Capp. Se ninguém lembrou de seu centenário de nascimento, este eterno menino não te esquece nunca.
M.S.
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Na TV Antigas Ternuras, você vê um engraçadíssimo desenho animado de Ferdinando intitulado “Dia de Maria Cebola” (Sadie Hawkins Day). Neste dia, criado por Ezekiah Hawkins, pai do “dragão” Sadie Hawkins, para desencalhar a filha tribufu, havia uma corrida em que os solteirões seriam perseguidos pelas encalhadas de Brejo Seco. Se uma das “beldades” conseguisse agarrar um solteiro, ele teria que se casar com ela. Era a grande chance de Violeta (Daisy Mae) pegar Ferdinando (Li’l Abner) de jeito. O animador deste desenho foi Dave Fleischer, o mesmo de Popeye. Isso pode ser percebido nas características de Chulipa...
(Se o filme der uma travada, mexam no botãozinho para adiantar e depois retroceder a imagem)