Entrou em cartaz, aqui no Rio, o filme “A Partida”, produção japonesa que venceu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na última festa do careca dourado. Fui assisti-lo no final de semana passado e posso dizer, sem receio de errar, que dos 53 filmes que assisti em 2009, este é, até agora, o melhor. Mas não quero me deter na apreciação de seus méritos estéticos cinematográficos, isso eu vou deixar para a época em que eu atribuirei o Prêmio Pipoca Fumegante aos melhores filmes do ano que passou.
*
Eu não me lembro de um filme que tenha me emocionado tanto nos últimos anos. Do que ele trata? No fichamento que faço de todas as obras cinematográficas que assisto em salas de cinemas, eu escrevi no “Resumo”: Violoncelista perde o emprego numa orquestra, por conta da crise, e resolve voltar para a sua cidade natal, onde consegue trabalho como agente funerário.
No Japão, antigamente, cabia aos familiares preparar o corpo dos entes queridos que tinham desencarnado. Hoje, já não fazem mais isso. Em cidades do interior, há agentes funerários que são contratados para aprontar, vestir, ataviar os que partiram. Eles fazem o trabalho com ritos cuidadosos, diante dos familiares. Nas grandes cidades, não tem disso, não. O procedimento é o mesmo do Ocidente. As funerárias cuidam dos preparativos longe dos olhos da família e imagino que o façam de forma absolutamente impessoal, totalmente profissional.
*
Devo confessar que eu não tenho boa relação com a chamada “a mais indesejável das visitas”. Já tem bastante tempo que ninguém da minha família canta pra subir e eu acho ótimo que assim esteja sendo. Mas inevitavelmente vai chegar uma hora em que essa cômoda situação vai mudar...
Por minhas próprias convicções, creio ser a morte apenas uma passagem, uma mudança de estado. O padre Antonio Vieira, em seus famosos sermões, diz que somos como as folhas das árvores: “vivos, somos folhas em movimento; mortos, somos folhas paradas”. A nossa anima utiliza uma casca, um invólucro, para se manifestar neste mundo físico. Todavia, nós somos o sopro que “anima” estes receptáculos, estes corpos. Não somos os corpos, somos o que dá vida a eles. Mesmo assim, não é fácil nos desapegar desta matéria densa, daí o sofrimento de quem fica. E falo isso para os que crêem, como eu, na existência da alma. Para os que não creem, os que acham que “morreu, acabou”, a situação é bem pior, na minha opinião. O sentido de finitude deve exasperá-los, angustiá-los até mesmo sem eles perceberem.
*

No filme, eu vejo aquele senhor e seu auxiliar despir, lavar, barbear os homens, maquiar as mulheres, penteá-los, vesti-los em gestos calmos, quase parecendo uma coreografia. Aliás, é uma coreografia. Só que eles não estão lidando com manequins. São pessoas muito amadas, que até bem pouco tempo estavam vivas, alertas, rindo, chorando, abraçando... A partida, de que fala o título do filme, pode ser vista como um momento temporário de despedida, como se aquele alguém fosse viajar. Para os que acreditam que tudo se encerra por aqui com a morte, bem, aí será um instante de despedida definitiva. Em qualquer das duas situações, a vida segue.
*
No filme, há várias cenas que simbolizam este prosseguimento. Num determinado momento, o rapaz está angustiado por ter aceito aquele emprego que é visto pelas pessoas como “impuro”. Ele está debruçado numa ponte sobre um rio, onde ele percebe dois salmões fazendo enorme esforço para nadar contra a correnteza. Então vem descendo, pelo fluxo das águas, um salmão morto, provavelmente vencido pelo cansaço no seu afã de subir a corrente e desovar. E logo vem mais outro salmão morto e ambas carcaças passam pelos que nadam e isso não faz com que os peixes desistam de seu intento, ao contrário, nadam com mais força. Para eles, a vida segue.
Em outros momentos, após cenas em que mortos foram preparados, aparecem bandos de patos selvagens em voos graciosos, ou cerejeiras primaveris balançando ao vento, soltando suas belas e perfumadas flores. Definitivamente, a vida segue.
*

Mas o que me emocionou no filme, a ponto de fazer com que eu escrevesse estas mal tecladas linhas? Ver aqueles ritos de partida, preparando entes queridos para o “até breve”? Constatar que a morte pode ser uma derradeira oportunidade para acertos de contas, arrependimentos e remorsos vãos?
Talvez...
Contudo acredito que o fato de se aproximar mais um aniversário de morte de meu velho pai – no próximo dia 28 de junho - fez com que mexesse comigo. Há no filme uma cena linda, em que o pai do rapaz explica a ele o que é uma “carta-pedra”. Ele o levou para um riacho cheio de pequenos seixos (onde o rapaz levaria a esposa, anos depois) e pediu que escolhesse um que simbolizasse o seu estado de espírito. O menino pegou uma linda pedrinha branca e lisa e a deu ao pai. E recebeu deste um pedregulho disforme, grande, escuro. O menino só entenderia o significado disso bem mais tarde.
*
Eu não troquei nenhuma “carta-pedra” com meu pai. Nossa despedida se fez por uma troca de olhares e de tímidos sorrisos entre nós, antes dele entrar no carro que o conduziu ao hospital, onde faleceria.
Se eu soubesse que era nosso último momento, teria corrido até ele, e o abraçado com força, e dito a ele que nunca o esqueceria, que sentiria muito a sua falta por toda a minha vida e, meu Deus, por que eu não fiz isso? Por que perdi esta oportunidade de deixar esta carta-pedra com ele, para que ele a tivesse diante dos olhos quando os fechou pela última vez?
Amigos amados, não percam a oportunidade de dar cartas-pedra aos seus entes queridos, façam seus ritos de partida enquanto eles estão vivos. A vida segue e sempre seguirá. A saudade dos que se foram, nunca, nunca vai acabar.
M.S.
(Para ver o trailer do filme A Partida, com 1min 52seg de duração, clique no botão com “X” no alto, na barra de ferramentas, interrompendo a música de fundo)
***********************************************
Na Rádio Antigas Ternuras, você ouve Joe Hisaishi, autor da lindíssima trilha sonora do filme, da qual escolhi esta: “Okuribito – Memory”
Na TV Antigas Ternuras você vê o trailler de “A Partida”.