terça-feira, abril 03, 2007

Nunca mais



Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."
(...)
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
“É o vento, e nada mais.”
(...)
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
(...)
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".
(...)
[Trecho do poema “The Raven (O Corvo), de Edgard Allan Poe, traduzido para o português por Fernando Pessoa]
*

Noutro dia, estava indo para o estacionamento do meu prédio quando vi uma linha por sobre o meu carro. No que eu puxei, percebi que na ponta estava uma pipa que tinha voado e se alojado ali, agarrada no meu batmóvel. Uma pequena chama se acendeu nas minhas retinas fatigadas. Lembrei que fui menino e que em determinadas épocas do ano eu andava pelas ruas olhando para o alto, procurando pipas voadas que tivessem sendo cortadas por linhas com cerol para eu correr e pegá-las para o meu divertimento. Então pensei: “Mas que pandorga é esta que me ativa memórias ancestrais?... Chega assim, sem um aviso, vindo em ventos celestiais... Será que não trouxe junto a ela minha infância em rituais?”
*

E já me vi ali correndo, estendendo a linha de um “dez dos grandes” (como chamávamos o carretel maior da linha Corrente de número 10), passando a mistura de cola de madeira e vidro moído, botando no alto aquele artefato feito de varetas finas de bambu e papel-seda colorido...
*
Hoje percebo o quanto de ritual existe no simples ato de empinar papagaio ou pandorga, soltar pipa, como dizíamos e acho que ainda dizem aqui no Rio. Quem fazia a pipa escolhia com critério o bambu, cortava varetas para a armação, ligava-as com linha dando o aspecto desejado. Depois, escolher a combinação de papéis finos para revestir o esqueleto de bambu.

Eu gostava de fazer em listras vermelhas e pretas, e chamar a minha pipa de “flamenguinha”. Depois, elaborar a rabiola com as sobras do papel, andar pelos terrenos baldios atrás de lâmpadas velhas, quebrá-las e moer os cacos até ficar uma farinha branca e bem fina; coava numa meia de seda velha. Depois, derretia as placas de cola de madeira (numa lata vazia sobre uma fogueira de lenha, porque cheirava forte e minha mãe não deixava fazer aquilo na cozinha), adicionava pó secante, misturava com o vidro moído, deslizava a mistura pela linha, com a mão em concha, fazendo o fio passar por baixo do polegar, de vez em quando dar uns estanques para retirar o excesso... Esperar secar e pronto!
*
Daí, eu chamava o vento com uma cantiga mágica, de tempos imemoriais: “vem, vento, catinguelê... Cachorro do mato quer me morder...” (o significado disso? Não importa. Importava era o vento aparecer). A brisa da tarde aparecia e fazia o meu pássaro rubro-negro singrar pelos ares... sendo conduzido por mãos hábeis, na busca por outros pássaros.

Ah... E ver um combate nos céus. A aproximação era sempre com negaceios. Debicava a pipa na direção da possível vítima, fazia que ia, mas voltava... O balé no azul podia durar segundos, minutos, pequenas eternidades, esticando o prazer até não mais poder. Aí vinha o bote final. As linhas se entrecruzando e definindo quem prosseguiria no jogo. Uma delas - às vezes as duas - teria partido o cordão umbilical que as ligava ao dono. E a pipa voava, bailando no céu, virando cambalhotas livres, lindas... Até ela mansamente cair numa rua, num quintal baldio, onde mãos ávidas a esperavam para novamente fazê-la subir para o azul.
*

Mas aquela pipa caiu em completa solidão. Nenhum bando de alegres meninos, não tinha dedos ávidos para disputá-la. Jazia ali, ao lado do meu carro. Agora, estava na minha mão. “E então, triste pandorga”, pensei eu, “onde está a tua vida, dá-me então os teus sinais... Vens com tuas cores de alegria e aos meus olhos provocais... Por algum artifício não sabido, presa ao carro em seus umbrais... Traga minha infância perdida! Cessa em mim esses meus ais...”
E a resposta veio num vento sacudido: “Nunca mais... Nunca mais...”
M.S.
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Na Rádio Antigas Ternuras, você está ouvindo 14 Bis com “Pequenas Maravilhas”.
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Pessoal: sei que ando meio sumido do ambiente blogueiro. Eu estava em semana de reestréia de meu espetáculo "Nhoque em Tempos de Crise". Ele agora estreou e, para os que moram no Rio e queiram me assistir fazendo palhaçadas, é só ir ao Teatro Glaucio Gill (Barata Ribeiro com Praça Cardeal Arcoverde, ao lado da Estação do Metrô Arcoverde, em Copacabana). A peça é uma comédia de se mijar de rir. Já teve blogueiro amigo que foi e gostou. Será um enorme prazer tê-los lá para me assistir. A peça está em cartaz de quinta a domingo, às 21h (domingo às 20h).

21 comentários:

Anônimo disse...

Adorei o poema traduzido por Pessoa. Pessoa faz parte da minha vida, assim como Florbela Espanca.

Adorei o teu texto. Tens uma capacidade de escrita que invejo. Uma inveja positiva!

E, pergunto, para quando a peça aqui, em Portugal, mais propriamente em Faro, no Algarve? loool
Cá te espero!!!

Beijinhos e uma boa Páscoa! *.*

Luma Rosa disse...

Marco, eu não usava cerol, meus "papagaios". O Cerol descobri quando vim para o Rio. Na minha época queimavámos a panela da mãe fazendo grude, uma espécie de cola feita com farinha e água, deve saber. Existia uma disputa entre as pipas mais bem feitas. Acho que entendíamos mais as pré-estréias! (rs*)
Marco, se pudesse iria vê-lo no Rio.
Feliz Páscoa! Beijus

Moacy Cirne disse...

Pretendo aparecer por lá (no teatro), meu caro. O mundo está precisando de boas gargalhadas. Um abraço.

Chellot disse...

Eis que uma blogueira amiga assistiu a peça e só não se mijou de tanto rir porque se segurou a tempo. Hehehe!
Quanto ao assunto da pipa eu me lembro de ter soltado quando pequena, mas não podia usar cerol pra não cortar a mão, então pegava emprestado com os meninos da rua. Hoje em dia são tão poucas as pipas. Antes o céu ficava lindo, todo colorido e era uma emoção tentar cortar a pipa alheia e correr atrás das avoadas.

Sucesso na reestréia.

Beijos de chocolate!

Renata Livramento disse...

me lembro da primeira vez que fiz e soltei uma papagaio! Foi na escola e de fato uma "aventura" bem marcante. Depois disso pouquíssimas vezes voltei a empinar papagaio...acho que voce me deu uma boa idéia!
ah, boa sorte com o espetáculo! Aliás como dizem os ardista " merda" pra você!
bjo

Claudinha ੴ disse...

Olá Marco!
Que post meu caro, que post! Você nos deslumbra com a lembrança da infância, viaja na poesia completando seu sentido, mesclando-se com ela e termina com a grande reflexão... Puxa vida...
Sobre os papagaios, eu já ganhei até concurso. Meu pai sempre me ajudava a fazer e eles eram vermelhos e pretos, mas não do Flamengo (ele é Galo)e sim as cores do Itabirense EC primeiro time do Telê Santana (primo dele) e da cidade de Itabirito-MG. Usei grude como Luma, mas pesava muito e acabei optando por goma arábica. Cerol nunca!
Um beijo e uma ótima temporada da peça! (A música é perfeita)

Anônimo disse...

Marco:
Das várias e variadas brincadeiras de criança uma das poucos que nunca gostei foi de soltar pipa. Não há - ou talvez haja - uma explicação, mas foi uma coisa que nunca me entusiasmou. Apenas acompanhava os outros soltando as suas.h

Anônimo disse...

Olá, Marcos! Vejo que tens gostado da minha casa, visto a volta. Fique à vontade, que fazer rir tb é meu desafio. Quanto às pipas, fiz tudo isso tb e era sensacional aquela correria para ver quem pegava a pipa cortada. Hj não tem muito, sabe porquê? O cerol é a maior incidência de morte em motoqueiros. A linha perdida com cerol corta a jugular no pescoço e a morte é quase instantânea. Infelizmente, hj é proibida. Abraços e "merda".

Anônimo disse...

Duas coisas (teriam mais), meu caro Marco:
1. a poesia dessa tua Antiga Ternura sobre Pipas me leva à concluir feliz que, apesar de sermos um continente, não existem muitas diferenças entre um menino do sudeste e do nordeste. Tive a felicidade de empinar Arraias (como chamamos aqui) e me vi no teu post.
2. A feliz escolha do Poe como "fundo" para essa beleza de texto.
Boa Páscoa. Forte abraço.

Anônimo disse...

Maravilha de poesia, perfeita!
Pipas? aff! eu não sabia empiná-las mas ajudava a passar cerol e ficava com as pontas dos dedos cortadinhas,rsss
Feliz Páscoa amigopratodavida
beijossssssssssss

Anônimo disse...

Marco querido,

Começando pelo teu post, aqui em Sampa a gente diz empinar pipa, ao invés de soltar pipas e acredita que até hoje na minha rua (moro na mesma desde que nasci), ainda tem marmanjos disputando um pedaço do céu pra empinar as pipas???rs
Isso tbém me remeteu à minha infância...hj é tão difícil ver um garoto brincar assim tão livremente né?
E sobre sua peça, que pena não morar no Rio, adoraria ir te assistir.
Sorte com seu espetáculo!
Um beijo e Feliz Páscoa!

Anônimo disse...

Lindo,MARCO. Muito lindo!!
Não fui de empinar pipa,mas seu texto com esta linda musica fez-me voltar a infancia...
bateu uma saudade...

Abração!!

david santos disse...

Olá!
Viva Pessoa!
Viva o texto, que é um grande texto. Parabéns.

Francisco Sobreira disse...

Marco,
O seu bonito texto me fez voltar à infância, quando me deliciava com o céu colorido de "raias" (assim se chamava a pipa na minha região). Um abraço.

Lena Gomes disse...

Oi!!! Hoje só estou passando mesmo pra te desejar uma Páscoa bem feliz e muito doce pra vc, ok? Tudo de bom! Beijos.

Anônimo disse...

ai, que delícia de blog...

Fernanda disse...

Eu me sinto da mesma forma quando vejo algum brinquedo, ouço uma música, etc que me faz me lembrar da minha infância. Hoje, eu e minha família fizemos uma limpeza nas coisas velhas daqui de casa e achei alguns dos meus jogos. Logo, me vieram à cabeça boas lembranças e muitas saudades!!

Muito obrigada pelos votos de Feliz Aniversário!

Beijinhos

Saramar disse...

Querido Marco, permita-me passar sem comentar (volto depois para ler e comentar, que não vou perder esse poema e suas reminiscências sobre o que mais adoro: as pipas).

Vim para lhe desejar feliz páscoa e à sua família, desejando também que o espírito da renovação o acompanhe sempre, no sentido da felicodade.

beijos
P.S. quem dera, eu morasse mais perto para ir chorar de rir com você e sua peça!

Claudinha ੴ disse...

Marco,
voltei para desejar uma boa Páscoa para você e os seus.
Beijão.

Luma Rosa disse...

Feliz páscoa!! Beijus

Vera F. disse...

Marco, tbm ando ausente da blogosfera, espero em breve voltar aos postes diários.
Muito brinquei na minha infância com pandorgas. meu irmão era creque na confecção delas!!!

Feliz Páscoa!!!

Bjos.