quarta-feira, março 22, 2006
Sorriso de Carmem
Um original de Marco Santos
Personagens:
Otávio Murilo
Carmem
Narrador
NARRADOR – Otávio Murilo era leitor inveterado de livros de bolso. Tinha preferência especial por novelas de suspense, de espionagem, policial... Vivia imaginando que a qualquer momento iria se envolver em uma estória como as que lia, cheia de mistério, sexo, romance. Embora morasse no Rio, ele trabalhava como mecânico de refrigeração em uma firma paulista. Nos finais de semana, ele voltava para a cidade maravilhosa para rever a mãe e o seu pequeno apartamento em Jacarepaguá. Ele preferia ir e voltar de trem. Era o seu toque de romantismo e mistério. Imaginava que aquele trem de prata, que ligava o Rio à capital paulista fosse o seu Oriente Express. Via os passageiros, e na sua fantasia, ficava imaginando que aquele seria um espião da CIA, aquela outra carregava em sua mala papéis que interessavam a uma potência estrangeira... Certa vez ele viu na estação uma mulher de pele muito clara, com óculos escuros e lenço nos cabelos cor de cobre. Ela estava sentada num banco, com o olhar distante. Foi o que bastou para a sua imaginação fértil começar a trabalhar. Imaginou-se abordando a mulher, mas como era tímido, sabia que não teria coragem. Mas eis que a mulher olhou para ele, sorriu...Vencendo a timidez que lhe chumbava as pernas, aproximou-se.
CARMEM – Você tem fogo?
NARRADOR – Aquele era um dos típicos diálogos de novela policial. A loura misteriosa, ele diante dela e a falta de um isqueiro no bolso...
OTÁVIO MURILO – Não, desculpe.
NARRADOR – Ele temia que a chance de continuar a conversa tinha se esfumaçado com a falta de fogo para o cigarro.
CARMEM – Não tem importância. Estou precisando parar mesmo...
NARRADOR – Além da voz rouca, Otávio Murilo estava encantado pelo sorriso daquela mulher. Que sorriso! Vencendo a timidez ele perguntou se poderia sentar. Com a concordância, ele se sentiu animado a continuar a conversa.
OTÁVIO MURILO – Você também vai para o Rio?
CARMEM – Sim, vou. Como é o seu nome?
OTÁVIO MURILO – Otávio Murilo. E o seu?
CARMEM – Carmem.
NARRADOR – O rapaz não conseguia desviar os olhos daquele sorriso. Estava mesmerizado, hipnotizado por aquelas pérolas dentais. Ela não era uma mulher especialmente bonita. Mas certamente não era feia. Tinha um certo exagero de maquiagem que incomodava Otávio Murilo. Entretanto, o brilho daquele sorriso enigmático fazia de Carmem uma estrela de Hollywood na visão do rapaz.
CARMEM – Você mora em São Paulo?
OTÁVIO MURILO – Não. Apenas trabalho aqui. E você?
CARMEM – Não.
NARRADOR – Ela apenas respondeu "não". Poderia querer dizer "não moro em São Paulo" ou "não quero falar sobre isso". O tom enigmático só fazia excitar a imaginação do rapaz.
OTÁVIO MURILO – Você alugou uma cabine ou vai de poltrona?
CARMEM – Poltrona. No segundo carro. Número 23.
NARRADOR – Um calafrio percorreu a espinha do rapaz. Os deuses estavam conspirando a seu favor.
OTÁVIO MURILO – Também vou no segundo vagão. A minha poltrona é a 22...
CARMEM – Nossa! Que coincidência...
OTÁVIO MURILO – Poderemos conversar...Quer dizer, se você não preferir dormir...
CARMEM – Não. Gosto de conversar...
NARRADOR – Entraram no vagão e procuraram suas poltronas. O trem partiu e os dois conversaram durante toda a viagem. Otávio Murilo estava cada vez mais encantado. Ficava imaginando comentários engraçados só para ver aquele sorriso. Ao chegar no Rio de Janeiro, combinaram de retornar para São Paulo no mesmo trem, na noite de domingo. Otávio Murilo contava as horas, os minutos para rever Carmem e seu sorriso enigmático. Na verdade, ela toda era um enigma. O seu andar era diferente, o jeito displicente de seu braço... Otávio Murilo estava fascinado pela moça. No domingo à noite, ele chegou à Central procurando-a com avidez. Ao encontrá-la sentada com os mesmos óculos escuros, o mesmo lenço misterioso a envolver os seus cabelos cor de cobre ele respirou aliviado.
OTÁVIO MURILO – Olá, Carmem. Como foi o seu final de semana?
CARMEM - Foi bom. Apenas bom. Eu comprei bilhete de cabine dupla. Fiz mal?
NARRADOR – Ela falou isso sorrindo aquele sorriso que o tirava do sério. Ela comprou cabine dupla! E queria que ele viajasse com ela! Se soubesse nem teria comprado o seu bilhete de poltrona. Mas na viagem anterior, ela não quis dar telefone, dizer endereço, nada que pudesse estabelecer contato. Foi melhor assim. O clima de mistério típico dos livros que tanto apreciava seria bem maior. Otávio Murilo entregou o bilhete de sua poltrona ao funcionário da ferrovia, que retirou o canhoto e lhe desejou boa viagem. Nem esperou para procurar a cabine de Carmem.
(Som de alguém batendo na porta)
OTÁVIO MURILO – Sou eu, Carmem.
NARRADOR – A porta abriu e a moça o recebeu com o sorriso que tanto o encantava. Otávio Murilo, com o corpo possuído por algum demônio da paixão, abraçou Carmem e a beijou longamente. O trem partiu. Ele despiu-se apressado, com gestos nervosos. Deitou-se no pequeno leito e ficou admirando a figura de Carmem, que o estava observando com placidez. Carmem, então, retirou os óculos, colocando em uma pequena mesinha onde já estavam dois copos com água. Com gestos delicados, mas firmes, removeu a peruca de cabelos cor de cobre, depositando-a na mesma mesinha. Em seguida, com o indicador e o polegar em forma de pinça, retirou o olho de vidro, o esquerdo, mergulhando em um dos copos com água. Desabotoou a blusa lentamente. E ao abrir o sutiã, antes teve o cuidado de remover a prótese mamária. Com gestos hábeis, abriu a saia e desprendeu a perna mecânica, tendo o cuidado de prendê-la entre a mesinha e a cama. Sentou-se ao lado do rapaz, que lívido, acompanhava aquele desmanchar sem pronunciar sequer um som. O golpe de misericórdia foi quando ela removeu a dentadura, deixando-a cair mansamente no outro copo com água. Com agilidade, ela deitou-se ao seu lado, chamando-o para si. Otávio Murilo olhou para Carmem, quer dizer, para a metade da Carmem que estava ao seu lado, visto que a outra metade jazia espalhada pela cabine. Olhou com tristeza para o sorriso de Carmem, pérolas imersas num copo, gargalhando desafiadoramente através do vidro. Aquele corpo, ou meio corpo, que estava ao seu lado estendia a comissura dos lábios murchos, pedindo um beijo. Otávio Murilo fechou os olhos e a beijou. Com a respiração ofegante, sugava-lhe o ar da boca, como uma ventosa. As mãos subiram pelos braços da moça até chegar no pescoço. Ele começou a apertar com força crescente. Até não sentir mais o sopro vital sair daquela boca gengivosa. Depois, levantou. Vestiu-se devagar, limpou cuidadosamente com um lenço todos os traços de sua passagem pela cabine, deu um último olhar para o sorriso de Carmem, submerso na água clara do copo e saiu.
M.S.
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Essa é mais uma das radionovelas que escrevi quando gravava programas em uma emissora de rádio comunitária. Tenho divulgado algumas aqui. Lembro particularmente dessa, por que deu um certo trabalho para gravar. Os atores, diretor e técnicos do estúdio ficavam prendendo o riso durante a gravação da fala final do narrador (eu fiz o "narrador"). Quando finalmente conseguimos gravar a última fala, foi uma explosão de gargalhadas no estúdio. Dedico este texto a Edgar Allan Poe, uma de minhas eternas ternuras.
M.S.
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13 comentários:
marco, meu caro, vc ja fez de tudo na vida, hein! e pelo jeito sempre bem...
um grande abraço!!
Marco, esta história pode ser antiga, mas hoje em dia deve ter coisa muito pior, ainda bem que as próteses de hoje não são destacáveis, por que senão não ia sobrar muita mulher viva por aí...rsrsrs...beijos de mim
auhahuauhauha maravilhoooooooooooso!!!
Marco!!! Você me enganou! Eu comecei a ler, me encantei, vivi o clima de romance, até me senti a Carmem, e depois você detonou com a pobre. Meu Deus! Valeu pelo meu riso que estava muito difícil de aparecer hoje, hahahaha, gostei, me pegou! Parabéns!
Êpa! Eu não fiz de tudo na vida, não, caro Théo! Tem coisa que não fiz e nem farei! Ré! ré! ré! ré!...
De vez em quando tenho colocado umas novelinhas que fizemos há um tempinho.
Um abração.
Madame Giovanna: Na época em que escrevi esta história não tinha silicone, botox, essas coisas...
Voc~e tem razão. Se cada um quiser apertar o gogó de mulheres com penduricalhos protéticos vai ser uma matança só! Beijo!
Yumi: Que bom que você gostou!
Claudinha: Ganhei meu dia! Eu fiz aparecer as pérolas de Claudia, este sorriso enigmático que tanto cativa...Ré! Ré! Ré! ...
Um beijo.
Heheheheh... eu sabia que era coisa de novela , porque o começo tava bem histórias de rádio. òtimo!
Mostrei ao meu pai , o grande responsável por essa minha loucura por música , o teu texto sobre as músicas da juventude. Mandou dizer o seguinte:"Nascido eu em 1900 e preto e branco e cinco anos mais novo , eu não gostava de luz negra , porque falaram que fazia mal(e realmente faz). Gostava mesmo da luz estrobo , só que a maldita sempre queimava antes da festa acabar. Quanto às trilhas sonoras , nunca tive a da Bandeira 2 , mas as de Supermanuela e de Selva de Pedra eram uma beleza. E a minha telefunken comprada com carnê no Baú da Felicidade tocava direitinho..."
E por falar nisso , andava ele numa febre de baixar as músicas de bailinho , coincidentemente. Saiu cada coisa aqui que eu nem imaginava que existia. Confesso que vi muita coisa bubblegum , um pouco açucarada demais até. Mas foi divertido.
Um abraço!
Grande Bruno: Melhor eu e o teu pai pularmos essa parte da idade Ré! Ré! Ré!...
Eu não sabia que a lâmpada de luz negra faz mal. Ninguém naquele tempo sabia. E a galera queria alguma privacidade. A gente dançava com o corpo coladinho, se fosse com luz normal, iria revelar certas características da nossa anatomia que não queríamos revelar, se é que você me entende... (Se bem que se a mulherada daquele tempo percebesse um, digamos, excessivo entusiasmo, largava a gente no meio do salão. Pergunta ao seu pai). Não tínhamos luz estroboscópica. A gente era pobre. E olha que eu achava que esta, sim, fazia mal aos olhos. Tenho estas duas trilhas citadas: Supermanoela e Selva de Pedra, ambas internacionais. São legais, mas nem se comparam a Bandeira 2. Do Selva, destaco "Frightened Girl", musicão, e a indefectível "Rock and Roll Luluby", do B.J. Thomas.
O aparelho de som da minha casa era um vitrolão da Philips. Mas nas nossas festinhas, usávamos o Grundig do Alcir (depois ele trocou por um Philips), com caixas móveis de incrível potência: 100 watts (tá rindo?). Eu tenho algumas coisas em mp3 que baixei no Nero. Se você me der o seu e-Mail eu tento te enviar. Coisa boa, nada de buble gum, não. Um abração.
Doce Claire: Curioso...Esse conto que você citou eu não li. Mas tentei criar um pouco da aura do Poe quando escrevi este texto para radionovela. A gente tinha gravado muita coisa nasquela época. Estávamos com todo o pique. O diretor nem queria mais ensaiar. Era tudo “de prima”. Agora imagina eu, tentando fazer voz de Cid Moreira, lendo as falas do narrador. Quando eu vi o povo com a mão na boca, prendendo o riso, virei para a parede se não eu iria errar. Lembro que o produtor chegou a rir alto, sorte que foi numa pausa da locução e aí deu para apagar depois.
O humor da cena é conseguido pelo inusitado, pela quebra do padrão estabelecido. Aliás, o humor acontece exatamente quando se dá a surpresa. Quando algo quebra o estabelecido. E a situação é tão inusitada! A Claudinha disse que estava se sentindo a Carmem, mas mesmo assim ela riu qundo ela foi se esquartejando. Imagina a situação do Otávio Murilo! Ele fantasiando por um lado e a realidade levando ele para um outro lado, jamais pensado.
Claro, se formos racionalizar, é o tipo de situação que primeiro a gente ri; depois diz: “pô, coitada da moça!” Mas aí já é tarde para piedade genuína. Já rimos. Um beijo procê.
Grande Marco:
Nossa! Que conto magnificente... Eu já estava criando um fundo musical romântico tipo "Trem das Cores",mas o desfecho foi de arrepiar pelo humor negro!
Sempre que possível,vá nos honrando com estes escrínios de criação,amigo.
Meu caro,este trecho é também muito para ser VISTO semelhante
àqueles episódios que passavam na Rede Tupi de Televisão.
Impossível esquecer de um chamado "Desculpe,foi engano",em que a Cleide Yácones fazia o papel de uma paralítica que recebia telefonemas de um psicopata que ligava à pessoa errada. Ela estava só no apartamento e o dito-cujo terminou por assassiná-la. O final terminava com a frase título dita pelo doente mental.
Eu era um menino que ficara sozinho em casa enquanto todos foram a uma festa,e não consegui conciliar o sono depois de assistir àquela extraordinária ação incidente.
Um cordial abraço de quem te admira por demais.
TV Tupi! Taí, meu caro amigo Paulinho grande Patriota, um belo tema para um post. Que bom vê-lo de volta.
Eu não assisti a este teleteatro, mas pela sua narrativa me parece ser coisa boa. Na Globo tinha o "Caso Especial", mas não me lembro deles terem levado ao ar algum caso de humor negro. Vou te confessar que aprecio o gênero. Quando bem engendrado, fica ó, da pontinha da orelha. Hitchcock era um mestre no assunto.
Um forte abraço, irmão!
hahahahahaha. Pobre Carmem. Imagino a sua voz de locutor, grave, forte. Eitcha... adorei. E o Poe, ah, sem comentários.
beijo, Marco.
Dirita: Pois é. A tentativa de "voz de Cid Moreira" só deixou a radionovela mais engraçada. Beijo.
Marco,
Eu ainda tenho o vinil do Eivets Rednow e comprei-o, à época, por conta da música que ouvi na trilha sonora da novela.
Fui descobrir outras excelentes músicas além daquela que levou-me a adquirir o LP (a galera mais nova não deve conhecer essa sigla).
Parabéns pelos excelentes artigos em seu blog, que já recomendei às pessoas de fino gosto de meu relacionamento.
Abraços,
Sergio T. Coelho
setcoelho@gmail.com
Valeu, amigo Sergio! Que bom vê-lo por aqui e mais ainda por saber que você costuma me ler! Eu sabia que você tinha o Eivets. Já o tinha visto na sua casa. Um dia eu acho ele num sebo ou num camelô e compro!
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