segunda-feira, março 21, 2005

Olhando as rodas (II)

No outro texto eu abordei a falta de civilidade daqueles que vão ao cinema e não se comportam. Recentemente, o grande Zuenir Ventura escreveu nO Globo sobre o assunto, desenvolvendo uma reflexão de que este tipo de (mau) comportamento era devido à TV. As pessoas agem nas salas de cinema como se estivessem nas suas próprias salas, assistindo à novela das nove.
Talvez.
Mas eu acredito que esta não seja a única explicação, nem mesmo a principal. Tenho outra teoria. Acontece que estamos vivendo tempos em que se acha o mais importante satisfazer os próprios desejos, sem se importar se esta satisfação vai incomodar o próximo ou não. Algo como: “se o celular é meu, eu atendo ele onde eu quiser. As pessoas precisam falar comigo e eu preciso ouvi-las. Fim de papo.” Ou ainda: “ah, eu paguei o ingresso e vim ao cinema com a minha namorada ou com meu amigo. Eu preciso falar com eles sobre o filme ou sobre o que me der na telha”.
Todo o resto, ou seja, o incômodo que estas atitudes causam, não tem a menor importância.
Este tipo de comportamento não é restrito às salas de exibição. Vale para qualquer outra situação, como estacionar o carro em fila dupla, prendendo quem estacionou corretamente; furar a fila para comprar ingresso ou para receber o autógrafo do autor; largar o carrinho do supermercado no meio do corredor, atravancando a passagem...
Mas o pior ainda não é este “excesso de espaço”. Vai tentar reclamar do “espaçoso”! Diga para ele, mesmo em voz baixa, escolhendo criteriosamente as palavras, com toda a educação que seus pais lhe deram, que ele não deve falar alto durante o filme, que não atenda ao celular, que o carro dele está impedindo a saída do seu, que há uma fila de pessoas que estão aguardando pacientemente a sua vez, que o carrinho dele está interrompendo a passagem...Vai falar isso!
Na melhor das hipóteses você vai ser chamado de “estressado”. Na pior, o representante da raça muar em questão vai gritar contigo e até chamar para a porrada. Pode ser também que ele te mande um “você sabe com quem está falando?”, como se ele fosse o próprio Zeus, que tivesse se dignado a descer do Olimpo para vir à Terra dar aos comuns mortais a honra de sua presença.
O mais curioso (ou desastroso) é que este tipo de atitude não é característico de jovens ou adolescentes. Pessoas (pseudo) maduras e até idosos também já estão procedendo assim. No outro dia, eu pedi, educadamente, a uma senhora (podia ser a minha avó) que não falasse alto durante a apresentação de uma peça de Teatro e ela só faltou pular no meu pescoço com um punhal, gritando “banzai!”.
Ultimamente, tenho procurado, com a ajuda de muita respiração, contagem até dez pausadamente, e atitude de velho budista, não entrar em atrito com estes elos perdidos da evolução humana. Às vezes perco as estribeiras com um ou outro “flanelinha” (provavelmente, a décima-primeira praga de Moisés a assolar a humanidade... evidentemente, isto é outra história). Mas na maior parte do tempo, procuro ter uma atitude exatamente oposta a do “neanderthal” que provoca a mim e aos circunvizinhos. Este procedimento costuma funcionar. A culinária batráquia (engolir sapos) tem o efeito de uma “Maracujina”, se você souber dosa-la.
Todo este estado de coisas, toda esta indigência que a vida moderna nos traz, me faz pensar naquela música, “Watching the wheels”, do bom e velho Lennon:
“Eu estou sentado aqui olhando a rodas rodarem, rodarem
Eu realmente adoro vê-las girando
Já não monto no carrossel
Eu tenho que deixa-las seguirem”
M.S.

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