sábado, dezembro 10, 2005

Oliver Twist globalizado

Quando eu estava no segundo grau, fui apresentado a um livro que fez a minha cabeça por muito tempo: “História da Riqueza do Homem”, de Leo Huberman. Ali, tomei conhecimento da dureza que os trabalhadores ingleses enfrentaram no século 19, quando a Revolução Industrial estava comendo solta. Mais tarde, já na faculdade, li textos que tratavam daquela vida dura, quando os capitalistas acumulavam mais-valia às custas de milhares de pessoas vivendo em condições sub-humanas. No mestrado, fiz um trabalho sobre as circunstâncias de trabalho dos operários ingleses no século 19 e no projeto em que estou trabalhando, li muito sobre condições sanitárias em Londres - a maior cidade do mundo no século retrasado e início do passado.
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Tudo que li teve obviamente impacto, mas uma boa chance de visualização da (má) qualidade de vida dos habitantes da capital inglesa tive agora com o filme “Oliver Twist” (Inglaterra/França/Itália/República Tcheca, 2005), novo filme de Roman Polanski que está nas telas brasileiras. Aliás, a produção tem todo o jeito de um blockbuster, mas o lançamento é de filme de arte. Está em poucas telas aqui no Rio.
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Polanski é reconhecidamente um bom contador de histórias e neste seu filme esta qualidade está mais que evidente. A história criada por Charles Dickens já foi filmada em outras oportunidades, já virou desenho animado, teve versão nos palcos e agora chega a vez de ganhar a visão do diretor de “O Pianista” e “O Bebê de Rosemary” (embora o meu filme favorito de le ainda seja “Faca na água”, produzido quando ele tinha recém-saído da escola de cinema de Lodz, na Polônia). E ele contou com o auxílio luxuoso de um elenco fantástico, do roteirista Ronald Harwood (o mesmo de “O pianista”), da bela fotografia de Pawel Edelman e de uma direção de arte (Jindrich Kocí) digna de concorrer ao Oscar.
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No elenco, o destaque óbvio vai para Ben Kingley (que já brilhara em “Ghandi”) no papel do asqueroso (e dúbio) “Fagin”. É impressionante a sua caracterização e, para mim que sou também ator, é uma maravilha ver um trabalho como este. No papel-título vemos o menino Barney Clark com ótimo desempenho. Na verdade, todos os atores estão muito bem no filme, embora Kingley esteja vários degraus acima, com sua maravilhosa atuação.
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A história é bastante conhecida. Um menino órfão é levado para o asilo do vilarejo onde vive e lá ele sofre fome e maus tratos dos dirigentes “cristãos” que, por trás de uma mesa farta, governam com mão de ferro os destinos daqueles pobres rapazes. Oliver é conduzido para trabalhar como aprendiz em uma funerária, onde continua a ser maltratado e insultado, até que foge para Londres. Lá, ele acaba se envolvendo com Fagin e seu bando de pequenos larápios. Mas o pior está por vir quando o facínora Bill Sykes (Jamie Foreman) resolve utilizá-lo para roubar residências.
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Roman manteve a desgraceira toda do dramalhão de Dickens, mas não há concessões para lágrimas dos espectadores. Não há closes prolongados no rosto lacrimejante de Oliver, nem os violinos sobem o tom nas cenas mais dramáticas, recursos usados à exaustão quando se quer apelar para o sentimentalismo de quem assiste. Polanski conta a história e faz com que a gente acredite naquela trama, nos conduzindo exatamente para onde ele quer.
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Para quem vive em um grande centro, onde a população de rua cresce, ou melhor, prolifera ao redor dos mais agraciados pela sorte, o filme não revela nada de novo. A dura realidade com que convivemos desde muito já nos tirou a capacidade de nos emocionar com crianças vivendo como ratos no esgoto. Infelizmente. Vemos que a moral hipócrita “cristã” (com aspas, porque não tem nada a ver com o que Cristo ensinou), aliada ao modo de vida que o CAPETAlismo (valeu, alemón!) nos impinge, vem de longa data e só tende a piorar, já que o Estado faz como se nem fosse com ele.
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A gente olha para a Londres do século 19 e reconhece a periferia metropolitana do Brasil do século 21. Ou de qualquer outro grande centro neste nosso mundo globalizado. O tic tac da bomba relógio sobre a qual estamos assentados está subindo o volume. Assim como a angústia de saber que ela está para explodir a qualquer momento e não imaginamos a extensão de seu poder destrutivo.
M.S.

11 comentários:

Luiz Henrique Oliveira disse...

Vi este filme na semana passada, e achei muito competente, em especial a atuação (sempre) marcante de Kingsley. Um bom trabalho de Polanski, outro mestre em seu oficio.

Abraços, e até.

Anônimo disse...

Grande Marco,boa tarde!

Charles Dickens é um dos meus escritores prediletos desde priscas eras. E iniciei-me justamente com "Oliver Twist",que me tocou até às raias. (Penso que Charles Chaplin e Federico Fellini inspiraram-se nele para criar aqueles tipos tão barrocamente bizarros.)

Só assentir contigo: "Ben Kingley (que já brilhara em “Ghandi”) no papel do asqueroso (e dúbio) “Fagin”. É impressionante a sua caracterização(...)".

Apenas vi o "trailler",mas este ator transcedeu na representação (eu não era muito fã dele,mesmo com o seu brilhante "mahatma",mas agora são outras favas,como se diz aqui. Daria-o o Oscar sem pestanejar!).

E como terá ficado a reprodução caricatural de pelo menos duas hilárias personagens: Sr. Bumble e sua empáfia humilhada "ad infinitum"; e Sr. Grimwig,que "comeria a própria cabeça" se Oliver não fosse um salteador...?

Porém,como disseste,"na verdade, todos os atores estão muito bem no filme",então assino em baixo de olhos blindados pelo desempenho de ambos os atores.

Feliz bordagem a deste post. Muito feliz.

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De outro assunto:

Amigo,foi uma honra Você indicar O ZOOM COTIDIANO; se nossa admiração é cômpar,indicarei o ANTIGAS TERNURAS (e ficaremos quites,falô?),porque aqui relembramos coisas como quem reconstrói a tarde cessante no árduo momento da meditação.

A mim resta apenas ser moroso no teu espaço trepidante: promovo conscientemente o contraste,viste só?...

Muito obrigado!

Anônimo disse...

Desculpe,amigo,pela chateza perfeccionista,porém é preciso: leia-se "embaixo". ;)

Bruno Capelas disse...

Outro filme que preciso ver urgentemente... gostei muito do Pianista e segundo o que vi no teu review , esse também não deixa a desejar... :D. Vamos ver o que acontece...

Um abraço!

PS:Não coloquei todas as informações que tinha sobre o Sgt Peppers senão o blog ia fechar por tamanho do texto... tive que resumir algumas coisas... muito obrigado pela lembrança mesmo assim!

Marco disse...

Luiz Henrique: Concordo contigo. Polanski é um dos mestres vivos do cinema. E Ben Kingley incorpora seus personagens de forma que nunca um fica igual a outro. Um abração!
Paulinho grande Patriota: Em todos os filmes que eu vi com o Sir Ben Kingsley ele deu um show (Ghandi, Lista de Schindler etc.). Perdi o "Casa de Areia e Névoa", justamente o que ele contracenou com o meu atual xodó, a Jennifer Connely (estou jogado aos seus pés com mil rosas roubadas...). O "Mr. Bumble" de Jeremy Swift está excelente, assim como o "Mr. Grimwig", que aparece pouco.
Sobre o outro assunto, nem acho o meu Antigas Ternuras digno de prêmios. Ando meio na contramão dos blogs, com meus textos longos e saudosistas. Mas de qualquer maneira, agradeço a sua gentileza e me orgulho de sua amizade.
Mutatis: Pode assistir o "Oliver..." com a minha recomendação. Quanto ao assunto Beatles, vou responder na sua excelente página. Um abração procê e obrigado pela visita!

Paulo Assumpção disse...

Opa! Já ia deixar este filme passar batido pelos cinemas. Depois do que escreveu, em especial a associação que faz com o tempo presente, creio que deva cerrar os olhos para o pouco caso da crítica com relação a este novo trabalho do Roman Polanki. Aliás, um filme dele está na minha prometida lista dos melhores filmes históricos. Acabei de deixá-la em seu respectivo post. Já conferiu? Também comentei outros textos por aqui. Um grande abraço!

Marco disse...

Caro personal teacher: ignore SEMPRE a crítica dos jornais. Algumas são de um ridículo de dar pena. Lá se foram os tempos em que líamos com prazer as resenhas de Ely Azeredo, José Carlos Avelar etc. Não deixe de ver este filme. Tenho certeza de que você vai gostar bastante. Já respondi a todos os seus comentários.

Anônimo disse...

Marco:

Permita-me um pitaco. No mundo blogueiro também existe a lei da relatividade,sabia?

Há textos breves que são um verdadeiro chá de purgante pela impressão de dilatado; outros,mais encorpados(no caso dos teus escritos),causam a sensação até de suscintos pelo estilo ameno e lúcido com que deitas a cyber-pena.

Aproveite bem este dia "vagante".

Anônimo disse...

Ainda não vi, mas gosto muito do cinema de Polanski, considero O Bebê de Rosemary um dos melhores filmes de suspense/terror. É minha primeira visita no teu blog e gostei muito, você está de parabéns! Continue escrevendo sobre cinema. Até!

Marco disse...

Caro amigo Paulinho: "se todos fossem iguais a você", já diria o grande Vinícius...Mas acontece que não são. Os que freqüentam este blog são poucos mas são ótimos. Eu procuro dividir minhas experiências/sensações com quem me dá o prazer de ler. E estes não se importam em ler meus longos textos. Eu tenho tanto prazer em escrever que acabo não pondo limites. Mas sei que a imensa maioria internauta gosta de ler coisas curtas, coisas da moda. Aqui no Rio, o sucesso do momento é uma ex-prostituta chamada Bruna Surfistinha que escreveu um livro e tem um blog com mais de mil visitas diárias. Parece que "nossa linda juventude, página de um livro bom" gosta mais de aprender os ensinamentos da Surfistinha do que ler meus longos saudosismos...
Mas continuarei sempre aqui. Escrevendo para poucos, que entretanto são mais que ótimos. Uma boa semana para você.

Marco disse...

Evandro: Você tem toda razão. Quem não tem como blindar o carro, andar de helicóptero ou se refugiar em condomínios-fortaleza há de sentir o maior impacto da bomba.
Gilbert: Seja benvindo, parceiro! Você está certíssimo. O "Bebê de Rosemary" é um clássico mundial do terror. Obrigado pela visita e pelas considerações elogiosas. Volte sempre que será muito bem recebido. Não escrevo só sobre cinema. Aqui está mais para, como disse Cazuza, um "museu de grandes novidades". Um abraço e retribuirei a sua visita.